Muniz Sodré: questão racial deve ser vista sem subterfúgios
Postado por Mauro Malin em 26122006 às 9:29:52 AM
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O professor da Escola de Comunicação da UFRJ Muniz Sodré, presidente da Biblioteca Nacional, diz que o Brasil não é dividido por linhas raciais, mas afirma que existe um mal-estar da raça, que não é um problema brasileiro, mas da civilização do Ocidente, onde se trabalha bem com razão e sentido, categorias ligadas à escrita, mas se trabalha mal com a questão do território: o território da pele clara precisaria ser preservado de uma invasão por pessoas de pele escura. Muniz Sodré pede que a questão racial seja vista de frente na mídia, sem subterfúgios:

– Quando a questão racial é levantada, imediatamente se forma uma reação, em jornais, que não é aberta, mas consiste em dizer “Meu Deus, que conversa é essa, é um papo racista dizer que tem separação entre negros e brancos no Brasil”. Tem separação. Não tem é segregação, como houve na África do Sul e nos Estados Unidos.

Eis a entrevista do presidente da Biblioteca Nacional.

Qual é sua percepção da emergência recente da questão do negro no Brasil?

Muniz Sodré – Os sociólogos, os antropólogos, os analistas da sociedade brasileira, de modo geral, sempre levantaram que a grande questão social do Brasil é a terra. E realmente a terra, desde o início do século, tem mobilizado o pensamento social, tem ensejado movimentos de protesto. Mas de quinze anos para cá a questão racial se tornou também uma questão social de primeiro plano. Não porque o país seja dividido por questões raciais. Eu realmente não acredito, e estou de acordo com os que dizem isso. Mas a raça é um mal-estar. Ela causa mal-estar porque nunca foi resolvida, efetivamente, em lugar nenhum. Os Estados Unidos, por exemplo, guetificaram a questão da raça. Os negros adquiriram direitos, mas eles estão “em seu lugar”. Mas os imigrantes, também. O grego está ali, é uma sociedade quadricularizada. Cada um com direitos, mas divididos, separados.

Qual seria a peculiaridade brasileira?

M.S. – O que sempre se falou e se elogiou aqui no Brasil é que não havia essa divisão, por causa da miscigenação. Mas a miscigenação, que é biológica, portanto é o cruzamento de fenotipias diferentes, de gente de cor diferente, não significa necessariamente o entrecruzamento cultural. Existe até a miscigenação de culturas, existe um sincretismo cultural. Mas esse sincretismo do fenômeno cultural não é o sincretismo das cores na pele. Porque a cor da pele é um mal-estar para a civilização do Ocidente, não é apenas do Brasil.

Em que o Ocidente avançou e onde se deteve?

M.S. – Todo o pensamento filosófico sofisticado, o pensamento alemão, europeu, de respeito à diferença, fala de um respeito intelectual. Diz assim: Eu admito o outro, o negro, o índio, admito o diferente de mim, e eu tenho que respeitá-lo, mas ele diz conceitualmente. O problema é quando o diferente se aproxima. É uma coisa mais prática, mais comezinha.

Todo o ódio racista, em países como a Alemanha, ou quando aparece em outros países europeus, não é pelo diferente, em si mesmo. É pela multiplicação desses diferentes se aproximando. O problema com os turcos: é porque tem muito turco. E não é nem porque dispute o mercado de trabalho. Só na cabeça do racista é que disputa o mercado de trabalho. Em geral eles realizam tarefas subalternas, que os próprios nacionais não querem fazer. O problema é a multiplicação dessa outra cor, dessa cor escura, que imaginariamente divide o lugar de onde o sujeito fala. E esse mal-estar não é muito bem resolvido porque o Ocidente pode pensar bem a razão, o sentido, que são categorias no Ocidente ligadas à escrita, mas pensa mal a questão do território, pensa mal a questão da proximidade. Só entende território como fronteiras, quando os territórios não são apenas físicos nem se definem apenas por fronteiras. Os territórios podem ser também emocionais, corporais. É a territorialidade da cor branca, da pele branca, que tem um problema com a territorialidade da outra cor.

Não dá para trabalhar apenas com conceitos socioeconômicos.

M.S. – Reduzir essa questão cultural funda da diferença a classe social, portanto a questão econômica, é não querer efetivamente enxergar o fenômeno, é não querer ver a profundidade do fenômeno. Por isso eu acho que, se está biologicamente provado, e está, realmente está, que a raça não existe, a única raça existente é a raça humana, a espécie humana é única – existem raças diferentes de cachorros, de animais, mas de gente só tem uma –, as cores são diferentes, a coloração da pele é diferente. Porque, dependendo do clima de onde cada um ficava, cada um precisava de maiores doses de melanina para se defender das radiações ultravioleta do sol. Quem tem menos melanina é branco, é claro, quem tem mais melanina é negro. A raça é única. Então, não há raça. Mas o que eu digo é o seguinte: se não há raça, existe a relação racial. É uma relação social construída por aqueles que vivem no imaginário de que as raças existem e de que cada raça tem características, uma pode ser superior às outras. Essa relação racial atravessa também a sociedade brasileira. E ela não pode ser tocada com argumentos econômicos, nem com argumentos puramente sociológicos, porque ela envolve a totalidade do existir. Ela é psicológica, é psíquica, portanto, é inconsciente, e também é, claro, econômica, social.

E no fundo a diferença de cor é uma vantagem patrimonial, num país patrimonialista. Aquele que já nasce com uma cor clara pode ser pobre, mas ele tem uma vantagem patrimonial, porque sabe que não será excluído por aquilo. É o descendente de africanos, descendente de escravos, são os afro-descendentes que carregam, além da condição de cidadania de segunda classe, essa dificuldade inerente à própria cor, que só pode saber, às vezes, ou quem tem empatia, simpatia, ou quem tem aquela cor. Para quem está de fora é difícil saber, porque as fronteiras do preconceito são sutis, são tênues.

Em que terreno deve ser travada a luta contra a desvalorização do negro?

M.S. – Esse problema tem que ser enfrentado não com partido político. Não adianta para isso. Nem com radicalismos, que também não adiantam. Nem com guerra, nem enfrentamento de ódios, é realmente uma divisão pela raça que nós devemos afastar da sociedade brasileira. Não é esse tipo de enfrentamento. Mas nós devemos olhar de frente a questão. Reconhecer que ela existe, que ela é real. E só assim podemos contribuir para superá-la.

De que maneira?

M.S. – Eu diria que com instrumentos da própria cultura do povo, o amor, a alegria, a ironia objetiva e coletiva das massas, e com políticas culturais de valorização do que vem da cultura negra, que ajudou a construir este país. É daí, é a partir dessas raízes que nós podemos dar fio terra para as antenas de aproximação real das diferenças, e não aproximação na cabeça, no livro, não aproximação puramente intelectual, não aproximação de papel.

Como o senhor vê o tratamento dado à questão na mídia?

M.S. – Quando a questão racial é levantada, imediatamente se forma uma reação, em jornais, que não é aberta, mas consiste em dizer “Meu Deus, que conversa é essa, é um papo racista dizer que tem separação entre negros e brancos no Brasil”. Tem separação. Não tem segregação. Não tem, como tinha o apartheid africano, ou a segregação como houve nos Estados Unidos, mas existe uma separação dominadora em que aquele que tem o patrimônio da pele clara considera a pele clara como se fosse o paradigma por excelência do ser humano. Isso só pode ser vencido, só pode ser ultrapassado culturalmente. Cultura, eu digo, visceralmente, fundo, incluindo o trabalho psíquico, o trabalho psicológico, e o trabalho educacional.

 

 

Categoria pai: Seção - Entrevistas

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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