PEDRO DE MORAES GARCEZ
Professor de Lingüística no Instituto de Letras da Universidade
Por Artarxerxes Modesto
LETRAMAGNA: Fale um pouco de sua trajetória acadêmica.
Garcez: Cursei a graduação em Letras (PortuguêsInglês) na UFRGS, sempre trabalhando 30 horas por semana em sala de aula como professor de inglês e observando os contrastes entre a formação que recebia e as necessidades de reflexão que o desempenho da atividade docente exige. Busquei o mestrado na UFSC, onde logo encontrei com Branca Telles Ribeiro, que me apresentou às perspectivas de pensamento e análise da fala-em-interação social e incentivou a realização de um projeto de investigação que se provou fundamental para a minha formação como pesquisador. Os dados de registro audiovisual de negociação comercial entre fabricantes brasileiros de produtos de couro e importadores norte-americanos que gerei em 1990 foram o corpus dos meus trabalhos de titulação de mestrado e doutorado (Garcez, 1991, 1996). No mestrado, descrevi diferenças entre os fabricantes brasileiros e os importadores norte-americanos quanto à organização do que chamei de pontos argumentativos, diferenças vistas como pistas de contextualização, conforme Gumperz (2002[1982]). Esse trabalho (relatado também em Garcez, 1992, 1993) foi realizado num marco de pensamento sociolingüístico interacional sobre “comunicação intercultural” que hoje pode ser visto como ingênuo, talvez graças aos avanços que tivemos desde então. Desenvolvi meu trabalho de doutorado sob a orientação de Frederick Erickson no ambiente intelectual altamente estimulante do Centro de Etnografia Urbana da Universidade da Pensilvânia. Estive envolvido em diversos projetos de pesquisa além do meu, gerando e analisando dados na própria universidade, em escolas da rede pública da Filadélfia e no Hospital da Universidade da Pensilvânia. Também colaborei intensamente com colegas em vários momentos de formação, acompanhando-os desde a elaboração de projetos até a redação dos relatórios. Além de professores como Sabine Iatridou e Gillian Sankoff, na Lingüística, John Lucy, na Antropologia, e Teresa Pica e Nancy Hornberger, na Educação, tive a oportunidade de conviver profissionalmente com pesquisadores como Ralph Ginsberg, Adam Kendon e Anita Pomerantz, que à época atuava na Temple University, também na Filadélfia. A participação em grupos de análise conjunta de dados liderados por Erickson na Penn e por Pomerantz na Temple constituíram oportunidades de participar de oficinas de análise de dados, que até então eu desconhecia e que serviram de inspiração para as práticas que temos, por exemplo, no Grupo de Pesquisa ISE (Interação Social e Etnografia) aqui na UFRGS. Nesse período, meu interesse pela Análise da Conversa Etnometodológica pôde ser desenvolvido e essa vertente de análise sociológica da fala-em-interação começou a constituir minha principal orientação teórico-metodológica. Minha tese de doutorado (Garcez, 1996), já sob essa influência, descreveu o que chamei de “seqüências argumentativas de negociação” (Garcez, 2002), justamente as estruturas de ação seqüencial em que as diferenças entre os fabricantes brasileiros e os exportadores brasileiros não se desenvolviam em “problemas de comunicação” (ver Garcez, 2004). Na volta ao Brasil, busquei o desenho de uma linha de pesquisa que me permitisse desenvolver a compreensão de questões da ordem interacional mais próximas à organização fundamental da fala-em-interação, isto é, conversa cotidiana (Dornelles & Garcez, 2001; Loder, Gonzalez, & Garcez, 2002; Garcez & Loder, 2005), e também atender as demandas da área em que atuamos, em geral voltadas para temas ligados a cenários e problemas específicos e sobretudo a formação de professores. A concentração nos contrastes entre conversa cotidiana e fala-em-interação de sala de aula, portanto, permitiu essa configuração que, em larga medida, orienta meu trabalho na UFRGS (ver, por exemplo, Garcez, 2006; Jung & Garcez, 2007; Garcez & Melo, 2007; Garcez, 2008).
LETRAMAGNA: Em qual projeto de pesquisa o senhor está envolvido atualmente?
Garcez: Estou iniciando a investigação do que por ora chamamos de “momentos de aprendizagem”. Nos últimos doze anos, desenvolveu-se um debate entre analistas da conversa, a maior parte deles europeus, interessados na fala-em-interação que envolve uma língua de interação que não é a língua das comunidades imediatas de algum dos participantes, e os estudiosos da aquisição de segunda língua que propõem que a interação é crucial para aquisição de uma segunda língua, ainda que em geral se equivoquem ao pressupor como suficientemente conhecida a complexidade da organização da fala-em-interação (ver Schlatter, Garcez, & Scaramucci, 2004). Esse debate tomou um rumo tal que nos últimos anos passou a se configurar um campo de pesquisa por ora identificado como “CA for SLA” -- Análise da Conversa Etnometodológica para os estudos de Aquisição de Segunda Língua, que busca examinar, entre outras questões, a possibilidade de fenômenos como a aprendizagem de uma outra língua ser flagrada na fala-em-interação enquanto ela acontece (ver Markee & Kasper, 2004). Esse interesse exige que se defina o que se está tratando por aprendizagem e que se demonstre empiricamente o que se apresenta como tal em dados de ocorrência natural. Já demos um primeiro passo nessa empreitada no trabalho de doutorado de Abeledo (2008), e estamos desenvolvendo nossa articulação para examinarmos uma variedade de dados de cenários escolares diversos: escola pública, escola privada bilíngüe, curso livre de idiomas, entre outras.
LETRAMAGNA:O livro “Sociolingüística Interacional” alcançou rapidamente as universidades brasileiras e cada vez mais tem sido adotado como referência nos estudos em interação. O senhor saberia explicar o porquê deste sucesso?
Garcez: Acredito que Ribeiro & Garcez (2002) seja uma obra útil, antes de mais nada. Reunimos ali um conjunto de oito textos centrais para uma concepção sociolingüística interacional das interações humanas face a face mediadas pelo uso da linguagem. Os textos que Branca Telles Ribeiro havia selecionado já nos pareciam importantes quando iniciamos o projeto em meados dos anos 1990, mas hoje, com um pouco mais de tempo decorrido, está claro que quase todos permanecem em discussão e servem de referência para trabalhos contemporâneos. São amostras muito relevantes de obras intelectuais importantes. Alguns colegas estrangeiros já me disseram que gostariam de ter à disposição uma coletânea assim sucinta, já que essa reunião de textos não existe em único volume em outras línguas. De resto, nos esforçamos muito para produzir os textos em tradução para o português de modo tal que tivessem qualidade textual, alguma uniformidade terminológica e apoio para o leitor, o que foi expandido nessa segunda edição também pelo acréscimo de um breve glossário (Garcez & Ostermann, 2002), construído em larga medida a partir dos próprios textos. Enfim, acredito que nosso trabalho meticuloso tenha produzido uma obra útil. O valor e qualidade das obras originais, contudo, é o que sustentou a nossa iniciativa e deve ser o que justifica o interesse contínuo pelo volume.
LETRAMAGNA: Quais as obras que poderiam ser consideradas marcos referenciais nos estudos em Interação?
Garcez: Acredito que as obras dos autores que aparecem no livro Sociolingüística Interacional, sobretudo as de Bateson, Goffman e Gumperz, são marcos referenciais. De outro lado, a obra dos etnometodólogos e analistas da conversa -- Harold Garfinkel, Harvey Sacks, Emanuel Schegloff e Gail Jefferson, para ficarmos nos fundadores -- é central para o entendimento que se tem na atualidade sobre a organização da fala-em-interação. O trabalho de antropólogos da educação, como Frederick Erickson e Ray McDermott, entre outros, e de antropólogos da linguagem, como Alessandro Duranti, também constituem referência importante.
LETRAMAGNA: Existe uma linha divisória entre a Pragmática, a Filosofia e a Sociolingüística Interacional?
Garcez: Como eu já tive oportunidade de dizer quando me solicitaram definições do que fosse a Sociolingüística Interacional e que espero em breve poder oferecer em uma publicação que estou preparando, trata-se de uma tradição com limites vagos. Talvez seja mais apropriado pensá-la como um lugar de convergência. Assim, falar de linhas divisórias seria talvez uma contradição da minha parte. Eu diria, contudo, que as relações de influência mútua e interlocução que convergem para algum lugar que se poderia pensar como Sociolingüística Interacional tenham mais a ver com tradições de pesquisa identificadas com disciplinas como a Antropologia e a Sociologia. Embora a obra de Grice, numa leitura pouco comum entre nós, seja relevante, e Wittgenstein [o segundo] possa oferecer algum vínculo promissor que resta explorar, a Filosofia fica mais distante. Isso talvez se dê pelo empirismo militante que orienta os estudos da fala-em-interação identificados de alguma maneira com a Sociolingüística Interacional. Pensando assim, além das decorrências metodológicas, uma linha distintiva entre a Sociolingüística Interacional e uma Pragmática lingüística alheia aos estudos empíricos da fala-em-interação social situada seria a centralidade da noção de ação como necessariamente ação conjunta e, assim, o privilégio às perspectivas dos participantes. Disso decorre, por exemplo, a divergência entre uma análise da conversa etnometodológica e uma teoria dos atos de fala, mesmo que ambas possam conceber o uso da linguagem como uma forma de agir no mundo. Discuto essas questões na introdução (Garcez, no prelo) do livro que Letícia Loder e Neiva Jung (no prelo) acabam de organizar com o propósito justamente de apresentar ao leitor brasileiro a Análise da Conversa Etnometodológica conforme a praticamos em nossos grupos de pesquisa.
LETRAMAGNA: O que distingue a Sociolingüística Quantitativa da Sociolingüística Interacional?
Garcez: Supondo que por Sociolingüística Quantitativa estejamos nos referindo à tradição variacionista laboviana, eu diria que as principais distinções dizem respeito ao interesses centrais de pesquisa, que por sua vez se refletem nos encaminhamentos metodológicos. A Sociolingüística Interacional tem interesse em responder perguntas do tipo “o que está acontecendo aqui”, neste cenário de ação humana, do ponto de vista dos participantes. Portanto, se interessa pela ação humana mediante o uso da linguagem e trata de examinar situadamente o que as pessoas estão fazendo umas com as outras. Assim, estamos interessados em ações realizadas no uso da linguagem. Às vezes usamos a metáfora da ecologia para nos referirmos ao caráter situado, conjunto das ações (Erickson, 2004). Disso segue um entendimento de que os participantes precisam o tempo todo analisar o que “está acontecendo”, e cabe a nós, analistas, articular o que eles tacitamente fazem. Assim, privilegia-se a perspectiva situada dos participantes na análise, o que chamamos de perspectiva êmica. Pautar-se ou não por demonstrar analiticamente o que os participantes estão fazendo na fala-em-interação produz uma série de exigências metodológicas e analíticas -- como anotar, e analisar como os participantes tornam relavantes, as pausas, as inspirações, os risos e os comportamentos não-vocais -- que são apenas empecilhos se o interesse for o de estabelecer relações entre formas lingüísticas e elementos das categorias da estrutura social em que se encontram os usuários das línguas para, por exemplo, flagrar e descrever a variação e a mudança lingüística. Se a empreitada analítica se voltar para o que as pessoas estão fazendo umas com as outras quando fazem a vida, seus corpos físicos importam, o decorrer do tempo físico importa, e as formas lingüísticas que elas empregam são elementos também importantes, mas em meio a uma torrente de sinalização em que, por exemplo, lapsos de silêncio podem ser relevantes para as ações. Isso pode ficar evidente nas transcrições que servem a uma ou outra empreitada analítica. Em síntese, eu diria que o privilégio à perspectiva dos participantes da ação social situada distingue o interesse dos sociolingüistas interacionais de outros estudiosos interessados nas relações entre linguagem e sociedade. E se é que de fato são duas vertentes de uma mesma Sociolingüística, pode ser preciosa para uma análise sociolingüística interacional como a de Rampton (2006), interessada na “estruturação social da vida cotidiana”, que aplaude a capacidade da análise variacionista de “revelar a rotinização alcançada pela hegemonia” (p. 363). Entre nós, talvez só Stella Maris Bortoni Ricardo tenha reunido essas perspectivas para o entendimento de fenômenos relacionados à experiência de escolarização dos brasileiros de comunidades pouco letradas. Penny Eckert é a pesquisadora variacionista que me vêm à mente como alguém que também se valeu dessa reunião de contribuições das duas vertentes para o entendimento de fenômenos da variação fonológica no inglês norte-americano e a experiência de escolarização na América do Norte industrial, sobretudo entre redes de adolescentes.
LETRAMAGNA:Quais são os últimos avanços na área de Sociolingüística Interacional nos últimos anos?
Garcez: Não creio ter autoridade para falar sobre avanços na área de Sociolingüística Interacional, em parte porque tenho dúvidas quanto ao escopo e mesmo à pertinência do rótulo atualmente e em parte também porque não estou atualizado com relação ao que se faz muito além dos cenários de fala-em-interação cotidiana e institucionais escolares. Nesses âmbitos imediatos ao meu trabalho de pesquisa atual, eu diria que os estudos da fala-em-interação têm avançado na descrição e compreensão de fenômenos sobre a organização seqüencial da fala-em-interação, na dimensão multimodal que as tecnologias de registro e manipulação de dados de registro audiovisual agora nos proporciona. Em termos de temas, acredito que tenha se avançado bastante sobre os fenômenos ligados à construção das identidades na fala-em-interação, até mesmo pelo refinamento dos índices para a definição do fenômeno que em parte tem sido referido no nosso grupo de pesquisa aqui na UFRGS como pertencimento. Acredito, portanto, que os sociolingüistas interacionais estejam aptos a contribuir para compreender o que se passa em cenários cada vez mais complexos de ação na vida contemporânea.
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)