Toca o berrante, seu moço, que é pra mim ficá ovinu

 

“O menino da porteira” é um hit da música sertaneja: “Toda vez que eu viajava pela estrada de Ouro Fino, lá adiante eu avistava a figura de um menino, que corria abria a porteira depois vinha me pedindo, ‘toca o berrante, seu moço, que é pra mim ficá ouvinu “. Já foi gravada por vários cantores, em solo ou em dupla. Agora sai o filme, com o cantor e ator, Daniel.

Tem tudo para ser um sucesso. É raro o brasileiro ou a brasileira que não tenha um pé no campo: podem ser os pais, os avós, os bisavós... Só em meados  do século XX , o Brasil presenciou uma transferência maciça da população do campo para áreas urbanas. Essa transferência ainda está em curso, ultimamente menos intensa. Tenho uma amiga que é de Ouro Fino. Sempre que nos encontramos passamos bons momentos trocando lembranças sobre nossas respectivas infâncias. 

Meus pais nasceram na cidade, mas meus avós vieram do campo, mesmo o bisavô paterno, que veio do sul da Itália, era homem de origem campesina.

Corre na família uma anedota pitoresca sobre meu avô materno, filho de português, mas nascido e criado em Pouso Alto, na Serra da Mantiqueira, no sul de Minas Gerais.  Na década de quarenta, do século passado,  meus pais resolveram levá-lo ao Cassino da Urca, onde cantavam Carmen Miranda e  os demais cantores que faziam   sucesso.

O Vovô João Manta observou, meio perplexo, as coristas de perna de fora. Depois irrompeu para o meu pai:

_ Ô Gerardo, tão novas e já peldidas.

Esse é o meu background, por isso gosto tanto do Chico Bento de Maurício de Sousa e apreciei muito a novela “Cabocla”, cuja história, segundo minha mãe, foi ambientada em Pouso Alto, pelo romancista  Ribeiro Couto. Vindo da capital, ele se radicou em Pouso Alto, em 1925, em busca de bons ares que lhe curassem a tuberculose, como no caso do protagonista.

 Quanto ao “Menino da Porteira”,  ainda não assisti ao filme, mas já ouvi várias gravações da música. Para minha surpresa, em algumas delas, a fala do menino foi alterada para “Toca o berrante, seu moço, que é pra eu ficar ouvindo”.  O produtor do disco certamente agradou os gramáticos tradicionais, mas por certo a música perdeu muito em verossimilhança.  Você, leitor ou leitora, acha que um menino, urbano ou rural, vai se dirigir a alguém dizendo “É pra eu ficar ouvindo”? O natural no repertório das crianças é dizerem: “É pra mim ficar ovino”. Só quando entram na escola, depois de alguns anos, vão aprender esta variante do enunciado : “É pra eu ficar ouvindo”, que agrada os ouvidos dos gramáticos.

Há muitas expressões típicas da oralidade no português do Brasil que os gramáticos rechaçam. Muitas passam ao largo das escolas, que não se apercebem delas. Os linguistas dizem que  há regras variáveis mais salientes e menos salientes. As mais salientes são as que recebem uma correção aberta, na escola e na sociedade em geral. Uma das mais salientes é o uso dos pronomes oblíquos, “mim” ou “ti”, como nos versos “ Te carreguei no colo, menina. Cantei pra ti dormir”.  Esse último ainda pode passar ileso pela escola, mas o “pra mim” seguido de verbo no infinitivo sofre  uma caçada escolar  permanente . As professoras dizem: “ Mim não escuta”; “Mim não trabalha”, etc.

De fato, o pronome “mim” co-ocorre com todas as preposições : “sobre mim”;  “sem mim” , “de mim”. Com a preposição “com”, herdamos do latim a forma “migo” : “comigo”, que se originou de “cum me cum”.

Mas os gramáticos decidiram que, quando a expressão “para mim” é seguida de um infinitivo, o pronome “mim” tem a função de sujeito dessa forma verbal e, por isso, não pode ser usado o pronome oblíquo “mim, que não é pronome sujeito. Temos de dizer “Para eu escutar”, etc.

 Para que não restem dúvidas, os gramáticos explicam: Se você não sabe se deve  dizer “para mim”, ou “para eu”, faça uma das duas  perguntas seguintes: se a pergunta for “para quem?”, use o pronome oblíquo. Por exemplo. A professora me deu nota dez. “Deu dez para quem?” Para mim. Se a pergunta for “Para quê?”, use o pronome “eu”. Por exemplo. “Este dinheiro é para eu passar o mês”. “Para quê?” “Para eu passar o mês”.

Depois de todo esse latinorum,  voltemos ao  menino da porteira. O natural seria ele dizer “É pra mim ficar ouvino”,  Mas essa construção fere a gramática. Como a música sertaneja busca legitimação nos grupos sociais urbanos, alguém, responsável por algumas gravações, optou por fazer a correção.

Fica aqui o meu protesto. O menininho de Ouro Fino era uma criança brasileira como outra qualquer, que tenha o português como língua materna, mas que o fala como o ouve em sua rede social.  O resto é conversa fiada, ou como diria William Shakespeare, é muito barulho por nada. E para não dizerem que deixei confusas as professoras, fica um conselho.  Nossas crianças não têm de usar sempre uma linguagem monitorada, aquela prevista na gramática normativa. Há momentos de se observar as regras das gramáticas, particularmente quando estamos escrevendo,  e há momentos de descontração, em que não é necessário nos  monitorarmos tanto.

 

Salvador, 18 de fevereiro de 2009.

 

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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