Analfabetismo, um estigma

 

Qual será o peso que carrega um indivíduo analfabeto em  sociedades letradas? Será que o estigma é maior em sociedades com histórica tradição de escolarização universal do que em sociedades como a brasileira onde ainda existem mais de 10% de habitantes que não leem nem escrevem?

A  pergunta me veio quando assisti recentemente ao filme de Stephen Daldry, “O Leitor”, que concorre no próximo domingo  ao Oscar de melhor atriz para Kate Winslet, uma Kate Winslet madura, que mal lembra a adolescente milionária de “Titanic “. O filme me foi recomendado por Marcia Elizabeth, minha irmã, que também  é  professora. Depois li uma resenha muito favorável no blog de Reinaldo Azevedo.

A história tem início no período que antecede a Segunda Guerra Mundial, durante a ascensão do nazismo na Alemanha.  Uma mulher madura, de personalidade tão complexa que deixa o espectador desconcertado, inicia um adolescente no sexo, sem culpa e muito satisfatório para ambos. Ela é suficientemente compassiva para socorrer o menino, antes de conhecê-lo, quando ele, acometido de escarlatina, vomita na porta do prédio onde ela mora. É fixada em limpeza corporal. Toma vários banhos e lava também o seu jovem amante.  Mas o que ela mais aprecia na companhia dele é a leitura que ele faz para ela em voz alta.  Pode ser em uma língua desconhecida, latim ou grego, ou em alemão.  Ela se compraz, ouvindo-o ler histórias de amor, mas rejeita O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, que avalia como pornográfico.  Possivelmente para ela, sexo era para se praticar e não para ser tema de romances.

Essa mulher, de reações tão imprevisíveis,  deixa seu emprego  em uma fábrica, no início da guerra  e se candidata a um posto de guarda na terrível SS. E vai trabalhar  em campo de concentração.

No pós-guerra, vai a júri, responsabilizada pela morte de muitas mulheres judias. Nessa altura, seu amante adolescente já é um acadêmico de direito, que acompanha os julgamentos.  Ela assume toda a culpa, inclusive a de ter elaborado um relatório manuscrito que muito contribuiu  para o genocídio no campo de concentração.  Condenada a vários anos de prisão, ela  passa a receber  de seu  amigo,  já então um advogado divorciado,  gravações de textos literários. Tem a iniciativa  de comparar as gravações com os livros homônimos que obtém na biblioteca do presídio.  Pouco a pouco, vai associando sequências sonoras nas gravações com a sua representação escrita. Só então os espectadores percebem que ela era analfabeta. O jovem amigo sabia desse segredo, que a teria isentado de alguns crimes, mas ele o preservou, para preservá-la.

Quanto de conhecimento sobre a SS e o holocausto dos judeus tinha a jovem quando se engajou na polícia nazista? Para ela, o importante era cumprir com a sua obrigação imediata, a de manter em ordem o campo de concentração.  Talvez não soubesse de nada, além disso. Por isso não se arrepende. Perguntada sobre o que os anos de prisão lhe ensinaram, ela observa que aprendeu a ler. Até que ponto sua condição de analfabeta a impedia de compreender o que se passava a sua volta?

Ficam essas perguntas que, a par de um bom entretenimento, “O Leitor” nos proporciona. As reações ao filme são variadas. Há os que condenam a protagonista, sem qualquer atenuante. Mas eu me apiedei dela. Sua condição a transformou num monstro. O analfabetismo é uma condição tão terrível que pode impedir  o indivíduo de entender até as circunstâncias de sua vida rotineira. Que cada um faça o seu julgamento.

Salvador, 18 de fevereiro de 2008

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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