In Hora, Dermeval  et alii (orgs.) Lingüística e Práticas Pedagógicas, Santa Maria: Palotti, 2006,p.11-31 (Primeira parte)

 

Stella Maris Bortoni-Ricardo ( UnB)

 

 

A sociolinguística já nasceu, na década de 60 do século passado, muito compromissada com questões educacionais. No seu nascedouro, nos Estados Unidos, alentava-se com a esperança de que poderia representar uma contribuição definitiva para melhorar o desempenho escolar de crianças provenientes de classes trabalhadoras ou de grupos étnicos minoritários, enfim, de crianças pouco familiarizadas com a língua e a cultura escolar ((Ver, Bortoni-Ricardo, 1997 ou 2005, especialmente os capítulos 12 e 13). Hoje em dia os sociolinguistas são muito mais realistas e sabem que grande parte do fracasso escolar que essas crianças experimentam advém de suas próprias condições de pobreza, como sua dieta empobrecida ou até mesmo a fome, suas condições precárias de moradia, a pouca convivência com os pais, que têm de trabalhar, o contato prematuro com a criminalidade urbana, a situação precária das escolas de periferia e tantas outras.  Contribui também para o seu fracasso escolar a expectativa limitada que os professores têm quando tratam com crianças afligidas por essas adversidades. Nutrem pouca expectativa em relação ao desempenho desses alunos, e isso resulta em atitudes discriminatórias  em sala de aula ( Ver Bortoni-Ricardo e  Dettoni  ( 2001) e Dettoni

 ( 1995)

       Embora detenham hoje uma visão menos ingênua, sociologicamente fundamentada, da questão do fracasso escolar, ou até mesmo por isso , os sociolinguistas  continuam a  trazer suas contribuições para a questão, examinando, em particular, as diferenças entre a língua oral de determinada comunidade e a língua empregada nas práticas sociais letradas, com ênfase  nas práticas de sala de aula. É com satisfação que constatamos que William Labov e associados, na Universidade da Pennsylvania , desde maio de 1998, vêm divulgando relatório de pesquisa sobre erros de leitura de crianças pobres afro-americanas, na qual esses sociolinguistas retomam as análises contrastivas entre as duas variedades do inglês envolvidas [1].  

No Brasil, também tem havido muitas contribuições dos sociolinguistas para o ensino da leitura e escrita. Citem-se, por exemplo, os trabalhos recentes de Maria Cecília Mollica ( 2000 e 2003) e de Dermeval da Hora (2004) , os trabalhos de divulgação científica de Marcos Bagno ( 1997)  bem como os meus livros Educação em Língua Materna, dirigido a professores e Nós cheguemu na escola, e agora? voltado para os cursos de Letras e Pedagogia, ambos  publicados pela Parábola Editorial em 2004 e 2005, respectivamente.

       Também em um recente projeto do MEC, financiado pelo Banco Mundial, PRALER, (www.fundescola.mec.gov.br), do qual tive a oportunidade de participar, os autores dos módulos valeram-se de muitos avanços da Sociolinguística Quantitativa e Interacional na construção de material que pudesse servir de apoio à escrita e à leitura no ensino fundamental.  O que marca esse trabalho é o fato de que as noções de Sociolinguística julgadas relevantes para o trabalho pedagógico em sala de aula não foram trivializadas, como às vezes acontece, nem receberam um status residual em relação à contribuição de outras vertentes das ciências da Linguagem, inclusive a tradição normativa.

       Considero que as noções sociolinguísticas são trivializadas quando aparecem em textos dirigidos a professores sem uma sólida base científica, apoiadas apenas no senso comum. Frequentemente vemos também informações sociolinguísticas reduzidas a diferenças dialetais no léxico, como se todo o componente de variação da língua, que vai ter consequências relevantes no trabalho pedagógico, se limitasse a alguns itens lexicais tradicionalmente citados como variáveis em diversas regiões brasileiras, por exemplo: abóbora e jerimum; aipim, mandioca e macaxeira; pandorga, papagaio e pipa etc.

Entre os bons trabalhos recentes de sociolinguística aplicados à Educação convém citarmos aqui uma nova geração de dissertações de mestrado, na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, a partir de 2004, que tem trazido contribuições sociolinguísticas para a leitura e escrita. Cito três delas: a  de Maria do Rosário do Nascimento Ribeiro Alves, que examina, na escrita de alunos ingressantes no Ensino Médio, problemas na língua escrita que deveriam ter sido sanados nas séries iniciais; a de Maria Alice Fernandes de Sousa, voltada para a incorporação de saberes sociolinguísticos no trabalho de uma professora de alfabetização, e  a de Maria Lúcia Resende Silva, que examina a possibilidade de inclusão de alunos de classes de aceleração em que a professora faz uso de recursos pedagogicamente sensíveis, fulcrados na pesquisa sociolinguística e etnográfica.

       Mais recentemente, produzi textos para um novo programa coordenado pelo MEC, em parceria com algumas universidades brasileiras, voltado à educação continuada de professores -- Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica -MECSEB – www.mec.gov.br. A contribuição da Universidade de Brasília para essa rede pode ser encontrada em  www.cform.unb.br. Juntamente com esse programa, que será aplicado em parceria com as secretarias de educação estaduais e municipais, está sendo produzido também pelo MECSEB um programa a ser veiculado nos estados brasileiros cujos resultados do SAEB – Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Básico - são mais precários. Trata-se do programa Pró-Letramento (www.mec.gov.br).

       O presente capítulo está baseado em material produzido para esses programas, mais especificamente nos fascículos “Da fala para e escrita 1 e 2” Módulo 1, Programa de Formação Continuada em Alfabetização e Linguagem do CformUnB e no fascículo “Modos de falar e modos de escrever”, este último do Pró-Letramento. Mantive algumas características do gênero dos textos em que me baseei, principalmente o tratamento bem simplificado dos fenômenos gramaticais em discussão, que visava a uma melhor comunicação com professores que porventura tivessem poucos conhecimentos de teoria lingüística. No entanto procurei citar vários trabalhos acadêmicos que aprofundam a discussão.

       No referido fascículo “Da fala para a escrita 1”, começamos a tratar do processo de integração dos saberes da linguagem oral no desenvolvimento da escrita, enfocando particularmente as regras fonológicas variáveis produtivas no português brasileiro. Vimos que, quando nossos alunos chegam à escola, têm uma competência comunicativa[2] bem desenvolvida. são capazes de se comunicar bem, no âmbito da família, e de conversar com os amigos, colegas, professores etc. Quando começam a ter contato com a língua escrita, ao aprender a ler e escrever, vão-se valer dos conhecimentos que têm da língua oral para se comunicarem também pela língua escrita. Neste capítulo continuamos a refletir sobre os recursos de que as crianças dispõem para se comunicarem oralmente, discutindo a integração entre saberes da oralidade e da escrita, mas ampliamos essa discussão, incluindo, além de regras próprias da pronúncia, regras que atuam na formação das sentenças, isto é, vamos trabalhar principalmente com algumas características da sintaxe na fala dos nossos alunos.

 

 

       Para iniciar nossa tarefa, apresentamos este episódio de uma conversa entre uma professora e alunos de séries iniciais. A conversa girou sobre a peça de teatro “Pluft, o fantasminha” de Maria Clara Machado, que as crianças haviam lido e espontaneamente escolhido algumas cenas para representar. Maria Clara Machado foi uma das maiores escritoras brasileiras de peças infantis. Nasceu em 1921 em Belo Horizontes e morreu em 2001 no Rio de Janeiro, onde morou desde pequena. Era filha do escritor Aníbal Machado. No Rio de Janeiro criou um famoso grupo de teatro amador, O Tablado. “Pluft, o fantasminha” é uma de suas peças mais conhecidas e apreciadas pelas crianças[3].A fala de cada aluno está identificada com um “A” seguido de um número. A fala da professora está identificada com um P.

 

 

A1-  É pra mim começar a falar, professora?

 

Pode começar sim, Daniel. Nós vamos todos conversar sobre a peça que lemos, “Pluft, o fantasminha”. Do que vocês gostaram mais?

 

A2-  Eu achei engraçado porque ele tinha medo de gente. E é gente que tem medo de fantasma.

 

P-  E por que ele tinha medo, Tatiana?

 

A2-  É porque ele ainda era pequeno.

 

A3-  Eu gostei muito quando os amigos da menina começou a procurá ela. Um tava carreganu uma vela, otro tava com uma garrafa e o otro com um mapa.

 

P-  Muito bem, André! Quem se lembra dos nomes deles?

 

A2-  Era João, Julião e Sebastião. E ele olhô na garrafa pensanu que era uma luneta e ele falô: tô venu uma casa perdida na areia branca. o otro falô que eles precisavu encontrar ela. E eles começaru a cantar. Ele falô: pobre Maribel. E o otro falô:a gente precisamu salvar a neta do grande capitão Bonança.

 

P-  Eles eram amigos do avô de Maribel, o capitão Bonança.

 

A3-  Eu achei o pirata Perna de Pau muito besta, ele era mau. Ele queria robá ela e deixou ela presa na casa do Pluft e disse que ninguém ia achar ela nunca mais e falô: se você fazê barulho e saí daí vô te levar pro mar para navegar, navegar, navegar. E saiu e foi buscar uma lanterna, ele tamém tava com medo de fantasmas.

 

A1-  A menina Maribel tava amarrada na cadera, quando ela viu o Pluft ela desmaiou.

P.Ele também teve medo dela, mas depois ficaram amigos.

 

A2- Quando Pluft viu a Maribel chorano disse pra mãe dele que ela tava derramano o mar todo pelos olhos.

 

 P- Ele nunca tinha visto ninguém chorar porque fantasma não chora, senão derrete.

 

A3-  Eu gostei muito quando o Tio Gerúndio do Pluft chamô os fantasma do mar pra ajudar a salvar a Maribel. Eles deru uma surra no Perna de Pau.

 

P- Eles eram os marinheiros fantasmas. E vocês gostaram também quando o capitão Perna de Pau encontrou o tesouro?

 

 A2-  Ele pensô que tinha um tesouro de verdade.

 

                  

 A1-  Ele pensô que o capitão Bonança era rico

 

P-E como era o tesouro do capitão Bonança?

 

A3-  Tinha uma foto da Maribel, uma receita de pexe assado e um rosário.

 

P. E o dinhero, onde estava o dinhero?

      

A2- Ele pensô que o dinhero tava tudo no cofrinho, mas o Tio Gerúndio disse que o dinhero tava no fundo do mar. O Perna de Pau ficou com medo e foi embora.

A1-  E todo mundo comeu os pastel de vento da mãe do fantasminha e fizeru uma festa. E Pluft gritô: viva  gente! E cantaru e dançaru.

 

 

 

  Vamos refletir agora sobre a conversa entre os três alunos e a professora. Como pudemos ver, os alunos foram capazes de comentar a peça que eles leram e representaram, recuperando os pontos principais. Fica bem demonstrada sua habilidade de compreender o texto com o qual trabalharam e a sua competência comunicativa para conversar sobre esse texto. Observe que souberam identificar o tema da peça, que é o momento em que qualquer criançafantasma ou gente - enfrenta o dilema de crescer e de lidar com seus medos. Veja por exemplo a primeira fala de A2: “Eu achei engraçado porque ele tinha medo de gente. E é gente que tem medo de fantasma.” Foram também capazes de reconhecer os protagonistas e o antagonista, que era o perigoso marinheiro Perna de Pau. Observem ainda que os alunos souberam estabelecer relações lógicas, como a relação de causa e efeito, como se na resposta que A2 deu à Professora:          

P-  “E por que ele tinha medo, Tatiana?”

 A2- “ É porque ele ainda era pequeno.”

     No curso da conversa, as crianças demonstraram habilidades para usar várias estratégias interacionais. Usam discurso direto quando dizem: “se você fazê barulho e saí daí, vô te levar pro mar para navegar, navegar, navegar”.Também usam competentemente o discurso indireto: “Quando Pluft viu a Maribel chorano disse pra mãe dele que ela tava derramano o mar todo pelos olhos”.Esses são recursos narrativos que demonstram bem a competência comunicativa que os alunos desenvolveram. Eles também fizeram referência a detalhes da narrativa. Por exemplo: “Tinha uma foto da Maribel, uma receita de pexe assado e um rosário.” Todas essas são evidências dos recursos comunicativos[4] que fazem parte da competência das crianças quando elas começam o processo de aprender a ler e a escrever.

   Como acabamos de ver, nossos alunos de séries iniciais são capazes de manter uma conversa, fornecendo contribuições relevantes ao tema em questão e fazendo avançar o processo interativo. Ao produzir suas contribuições para a conversa, expressam-se espontaneamente, construindo suas frases com os recursos que têm. Se atentarmos para a forma de seus enunciados, verificamos queali muitos usos próprios da linguagem não-monitorada, empregada no dia a dia em ambientes informais, nas conversas entre amigos ou entre pessoas que se conhecem bem. As crianças incorporaram esses usos ao seu repertório porque convivem em ambientes onde tais usos lingüísticos são frequentes. No entanto, como sabemos, é função da escola ampliar a competência comunicativa dos alunos, ajudando-os a dominar mais recursos comunicativos. A forma como as crianças do nosso diálogo conversam é adequada às interações informais, que não exigem uma fala monitorada. Mas, à medida que forem crescendo e avançando na sua escolaridade, terão necessariamente de participar em outros eventos, mais formais. Para se ajustarem de forma adequada às expectativas dos participantes nesses eventos mais formais, vão precisar monitorar também a sua fala. Por exemplo, na conversa informal com a professora, Daniel disse: “É para mim começar a falar, professora?”. Esse enunciado não está adequado a um evento de interação mais formal. Numa circunstância formal, Daniel precisará dizer: “É para eu começar a falar, professora?”. Esses dois enunciados são variantes da mesma regra variável[5].

    Vejamos agora  algumas características da fala dos alunos, discutindo em cada caso a variante que eles usaram e a outra variante possível, a que é reservada aos estilos mais monitorados. Quando discutimos regras variáveis com professores, uma pergunta frequente que surge é:  Por que temos na língua variantes que são bem recebidas em estilos formais e outras que não o são? Boa pergunta! Vamos a ela.

   A língua de uma comunidade é uma atividade social e como qualquer atividade social está sujeita a normas e convenções de uso[6].

   Em qualquer língua podemos escolher entre usos mais formais ou menos formais. Mas essa escolha não é totalmente livre. Ela é condicionada pelas normas que definem quando e onde é adequado usar linguagem informal (não-monitorada) e quando e onde se espera que os participantes da interação usem linguagem formal (monitorada).

     Toda vez que duas ou mais pessoas se envolvem numa interação verbal, cada uma delas cria expectativas sobre a forma como ela própria e seus interlocutores vão-se comportar. Queremos dizer que, em uma interação face a face, ou mesmo mediada pelo telefone ou pelo computador, todas as pessoas envolvidas seguem normas sociais que definem o seu comportamento, particularmente o seu comportamento linguístico. Se todas elas consideram a interação em que estão envolvidas como informal, tenderão a empregar formas linguísticas adequadas às interações informais. Se uma delas tiver uma interpretação diferente e considerar a situação como formal, poderá vir a empregar formas inadequadas para a situação. Da mesma maneira, em uma situação formal, se um interlocutor escolher usos linguísticos informais, sua fala resultará inadequada para a situação. Mas cabe aqui uma observação. Às vezes uma pessoa reconhece que a situação é formal, dispõe-se a monitorar-se, mas lhe faltam recursos comunicativos <

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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