Formação de professores: problemas e perspectivas

Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB)

No prelo – Editora Contexto

 

A professora e o aluno de sétimo ano, de 15 anos de idade, estão lendo uma crônica de Fernando Sabino em que o autor narra suas experiências como locutor de rádio:

 _ “Todo mundo sabe que a BBC de Londres é uma das mais poderosas e bem organizadas estações radiofônicas do mundo.”, lê o aluno.

_ Onde fica Londres? – ela pergunta.

_ Nos Estados Unidos.

 Ela esclarece e ele continua a leitura, até encontrar uma referência ao Big Ben.

_ O que você acha que é o Big Ben?

_ Que eu saiba é uma explosão que deu.

  “A professora começa então a explicar a diferença entre ‘Big Bang’ e ‘Big Ben’.” O episódio é bem ilustrativo das dificuldades de compreensão leitora dos estudantes no Brasil.

Se estamos longe de sermos um país com um sistema modelar de educação, pelo menos já somos um país que avalia de forma séria e sistemática o resultado da aprendizagem nos diversos níveis de ensino, desde o final da década de 1990, quando se instituiu o SAEB (Sistema de Avaliação do Ensino Básico) hoje aperfeiçoado e substituído pela Prova Brasil.

Desde as primeiras aplicações do SAEB tem sido identificada no desempenho de nossos estudantes uma grande deficiência na compreensão leitora e no uso de operações básicas de cálculo. Os resultados mais recentes da Prova Brasil não indicam uma mudança substantiva nessa situação. Em outubro de 2008, o IBGEPNAD - Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio - causou espanto ao divulgar que 1,3 milhão de crianças, entre 8 e 14 anos, são analfabetas. Dessas, 1,1 milhão freqüentam escola.

A compreensão leitora está diretamente relacionada ao conhecimento de mundo que o leitor detém. Estudantes que têm pouco contato com textos escritos, em livros, revista, internet, ou qualquer outro suporte, dependem muito da mediação do professor para compreender os textos que leem, inclusive os seus livros didáticos (Cf. Bortoni-Ricardo, 2008a; 2008b; 2007).

Vejamos mais um exemplo de dificuldade de compreensão leitora relacionado às características do conhecimento de mundo que o leitor traz consigo para promover o seu diálogo com o texto. Trata-se da leitura de um conto de Luís Fernando Veríssimo feita por uma senhora de classe média, que foi alfabetizada em um programa de EJA (Educação de Jovens e Adultos). O tema são as agruras de um marido pego em flagrante de mentira. Durante o carnaval ele envia mulher e filhos para descansar na praia e fica em Porto Alegre alegando muito trabalho no escritório. Para seu desespero, porém, um importante jornal local estampa a sua foto vestido de havaiana, durante um baile, na companhia de outros colegas também devidamente caracterizados para o evento. O texto é a transcrição de uma ligação telefônica do marido para a esposa. Quando a narrativa se inicia, antes que a mulher esboçasse qualquer reação, ele se apressa a dizer que a personagem da foto não é ele. É alguém muito parecido. “Qual foto?” pergunta a mulher, que não havia visto o jornal. A partir desse primeiro ato falho segue-se uma sucessão de desculpas esfarrapadas que deixam bem evidente a má-fé do marido carnavalesco. A obra é uma tessitura da mais fina ironia, que é a marca registrada de Veríssimo.

Nossa colaboradora leu com interesse e razoável fluência o texto, mas ao tecer seus comentários finais expôs com convicção a pena que sentia do pobre marido que estava sendo tão mal interpretado pela esposa. Os pesquisadores responsáveis pelo registro da leitura e interpretação insistiram com ela que talvez o marido estivesse mentindo. Ela não admitiu essa hipótese. Na sua leitura o marido era a vítima.

Por que teria a leitora falhado na compreensão da força ilocutória do texto? Por que não captou as múltiplas pistas da ironia do contista? Possivelmente não foi desconhecimento de algum item do vocabulário. É mais provável que sua compreensão esconsa da intenção do autor resulte da falta de familiaridade com o gênero textual e também com outros trabalhos de Luís Fernando Veríssimo.   

Desenvolver a competência leitora de seus alunos, com toda a complexidade que isso implica, bem como sua capacidade de trabalhar com as operações lógicas de matemática básica é provavelmente o maior desafio que se apresenta aos professores no Brasil. Esse desafio é mais grave quando os professores têm alunos provenientes de famílias com cultura predominantemente oral.

Pesquisas recentes do Instituto Paulo MontenegroIBOPE (www.ipg.org.com.br) mostram que cerca de dois terços dos adultos brasileiros são analfabetos funcionais. Portanto, entre os 53.028.928 milhões de estudantes matriculados no Ensino Básico, conforme o Censo Escolar 2008, um alto percentual tem famílias que não os podem ajudar a ler e escrever melhor.  A tarefa fica então para os professores.

No exemplo com que iniciamos este texto, o aluno leitor foi capaz de construir sentidos da crônica que leu porque a professora realizou uma mediação oportuna e precisa. Mas essas estratégias de mediação dependem de duas circunstâncias: o docente tem de estar disposto a promover as intervenções e ser detentor do conhecimento necessário. A primeira está associada à própria filosofia didática que assimilou em seu curso de formação. A segunda, como já mencionamos, decorre de seu conhecimento enciclopédico, ou conhecimento de mundo, que se vai constituindo à medida que cresce sua familiaridade com a cultura letrada.

Parece inverossímil que um professor não esteja disposto a mediar o processo de compreensão leitora, já que a atividade estaria na própria essência do seu mister profissional. No entanto, há pesquisas que mostram certa inação dos professores diante de textos complexos que seus alunos têm de ler (Cf. Pereira, 2007). Muitas vezes o professor recomenda que a leitura seja feita em casa e o ônus da compreensão fica com o aluno.

Quanto à segunda circunstância – a formação do acervo de conhecimento enciclopédico letrado do professor – está diretamente relacionada à qualidade do currículo e do funcionamento de seu curso de formação.

O problema torna-se mais crítico, e o desafio mais contundente, se considerarmos que a formação dos professores, em nossa tradição escolar, privilegia muito mais os conhecimentos teóricos que as metodologias que os habilitem efetivamente a desenvolverem seu trabalho pedagógico em sala de aula.

Vejamos o que diz a esse respeito a pesquisadora Eunice Durham em entrevista à revista Veja (23112008):

As faculdades de pedagogia formam professores incapazes de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria. Mais grave ainda, muitos desses profissionais revelam limitações elementares: não conseguem escrever sem cometer erros de ortografia simples nem expor conceitos científicos de média complexidade. Chegam aos cursos de pedagogia com deficiências pedestres e saem de lá sem ter se livrado delas. Minha pesquisa aponta as causas. A primeira, sem dúvida, é a mentalidade da universidade, que supervaloriza a teoria e menospreza a prática. Segundo essa corrente acadêmica em vigor, o trabalho concreto em sala de aula é inferior a reflexões supostamente mais nobres. Os cursos de pedagogia desprezam a prática da sala de aula e supervalorizam teorias supostamente mais nobres. Os alunos saem de lá sem saber ensinar.

Tomemos o caso da compreensão leitora, por exemplo. Para ensinar os alunos a ler com compreensão e a escrever com razoável coesão textual, é preciso que os professores que estejam em formação inicial ou continuada desenvolvam sua própria competência leitora, ampliando seu conhecimento de mundo. É preciso também que o currículo dos cursos de formação de professores reserve carga horária e investimento adequados a uma atualizada pedagogia da leitura.

O problema não está restrito à formação de professores para o início de escolarização. Também as licenciaturas em letras, que formam os professores de quinta a nona série e de Ensino Médio, precisam ser reavaliados tanto na sua estrutura curricular quanto nas suas prioridades.

Em novembro de 2008, foi realizada a Prova do Enade – Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (antigo Provão) – em todos os cursos de letras no Brasil, constituída de um componente de formação geral e de um componente específico da área. Esse último tomou como referência o seguinte perfil do profissional[1]:

                         I.                   Competência intercultural evidenciada na capacidade de lidar, de forma crítica, com as linguagens, especialmente a verbal, tendo em vista a inserção do profissional na sociedade e suas relações com os outros;

                       II.                   Domínio do uso da língua portuguesa, nos registros oral e escrito, em termos de estrutura, funcionamento, variedades lingüísticas, literárias e culturais;

                     III.                   Capacidade de refletir teoricamente sobre a linguagem, de pensar criticamente sobre os temas e questões relativos aos conhecimentos lingüísticos e literários, bem como de compreender a formação profissional como processo contínuo, autônomo e permanente;

                    IV.                   Domínio das teorias de aquisição de línguas e de metodologias de ensino de línguas e literaturas;

                      V.                   Conhecimento das tecnologias da informação e da comunicação.

 

No componente de Formação Geral, a prova teve por objetivo verificar as capacidades de:

I - Ler e interpretar textos;

II - Analisar e criticar informações;

III - Extrair conclusões por indução eou dedução;

IV- Estabelecer relações, comparações e contrastes em diferentes situações;

V- Detectar contradições;

VI - Fazer escolhas valorativas avaliando consequências;

VII - Questionar a realidade;

VIII - Argumentar coerentemente.

 

  Um curso de formação que prepare profissionais com esse perfil e capacidades certamente estará habilitando-os a trabalhar a compreensão leitora e a produção de textos com eficiência. Não dispomos dos resultados do referido Enade, mas a correção de uma amostra composta por 1.995 provas de todas as regiões brasileiras, representando 3,5% do universo de estudantes de letras, mostrou que a média foi de 42,90 numa escala de 0 a 100 pontos. O resultado mais eloquente obtido nessa amostra, porém, diz respeito à diferença entre a média dos ingressantes (44,40) e a média dos concluintes (42,10) na parte discursiva da prova. No grupo dos concluintes o desvio padrão foi um pouco maior revelando a maior heterogeneidade desse grupo. É possível que os resultados totais do Enade tragam mais informações. Por enquanto os resultados da correção amostral são desoladores. Nossos cursos de letras foram reprovados no Enade 2008. Não disponho dos resultados do Enade pedagogia também realizado em 2008. Esses resultados são importantes porque nos permitirão uma análise da qualidade da formação de professores para séries iniciais com critérios científicos.

Fica, à guisa de conclusão, o registro de nossa inquietude com a qualidade da formação de nossos professores, que advém principalmente dos dados revelados em nossas pesquisas conduzidas na Universidade de Brasília sobre a compreensão leitora de estudantes de diversos níveis de ensino, em escolas no Distrito Federal. 

 

 

                Referências

BORTONI-RICARDO, S.M. Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 8, número 3, setdez. 2008a.

______. Mediando a compreensão de um livro didático de História do Brasil. In: ENDIPE: “trajetórias e processos de ensinar e aprender: práticas e didáticas”, XIV. Anais do... Organizados por C. Traversini et al. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008b. V. 2. p. 646-661.

______. Compreensão de leitura: da palavra ao texto. In: GUIMARÃES, E.; MOLLICA, M. C. (Orgs.). A palavra: forma e sentido. Campinas: Pontes; RG, 2007. p. 99-107.

PEREIRA, P. V. O ato de ler: uma análise de prática da leitura em disciplinas do ensino médio. 157f. Dissertação (Mestrado em Lingüística)–Universidade de Brasília, 2007.

 

 

 

 

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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