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A Academia se atrapalhou
Livro-referência, Volp sofre com emaranhado de imprecisões da nova lei
ortográfica
Foram meses de trabalho para interpretar o Acordo Ortográfico,
traduzi-lo e dar a ele o corpo de 349.737 palavras do Vocabulário
Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras. A
Comissão de Lexicografia da ABL, com Eduarto Portella (presidente),
Evanildo Bechara (secretário) e Alfredo Bosi, esteve à frente dos
especialistas Ângela Barros Montez, Cláudio Mello Sobrinho, Débora
Garcia Restom, Dylma Bezerra e Ronaldo Menegaz.
Como toda obra humana, o livro da Global Editora - base para os
dicionários - saiu com falhas. Poucas até, considerando que se baseou
num texto impreciso marcado por lacunas. Os idealizadores e redatores
do Acordo estavam mais interessados na importância política da
unificação do que na solução das centenas de problemas técnicos que
legaram à Comissão. Daí as lacunas e a enxurrada de etcs..
Das falhas, algumas apontamos aqui como subsídios aos editores do Volp.
O substantivo coa, por exemplo, saiu acentuado, embora o Acordo
deixe só três palavras com acento diferencial: o verbo pôr, a forma
verbal pôde, 3a pessoa do singular do pretérito perfeito de pôr,
e, em caso de ambiguidade, o substantivo fôrma. Mas o Volp traz
côa, com o acento para a distinguir de coa(s), rara contração de
com + a. O que é coa? Ato ou efeito de coar; coação; porção de
líquido coado; e nata coalhada. Têm a grafia das formas verbais coa,
coas, agora sem o acento circunflexo que as coroava.
Conclui-se que o coa acentuado do Volp foi distração, não má
interpretação do Acordo. A grafia será corrigida na próxima edição,
informa Cláudio Mello Sobrinho, integrante da comissão de
lexicografia.
Contradições
Outro engano se refere ao péssimo capítulo do hífen, calcanhar de
aquiles do Acordo. No item 7 da Nota explicativa do Volp (página LII),
registra-se água-de-coco, hifenado; no corpo, água de coco,
desifenado. Por que duas formas? É com hifens que deve ser redigida?
Daí a nota a incluir entre as denominações botânicas e zoológicas, as
formas designativas de espécies de plantas, flores, frutos, raízes e
sementes, ao lado de azeite-de-dendê e bálsamo-do-canadá.
Pronto. No próximo Volp, deverá ter hifens. A não ser que os editores
reestudem o caso e o mantenham sem hífen, como água de cheiro,
sinônimo de água-de-colônia, exceção hifenada. Só que água de
cheiro não se alinha entre as formas designativas de espécies de
plantas, flores, frutos etc..
Já francoatirador aparece aglutinado no Volp (a vogal final do
primeiro elemento é diferente da que inicia o segundo). Mas surge com
hífen no dicionário da ABL: franco-atirador. A forma do Volp
prevalece.
Omissões
Há outras oscilações, mais com jeito de omissões. Faltam palavras
muito usadas como megassena e duplassena, grafadas pela regra que
duplica r e s do segundo elemento unido ao primeiro terminado em
vogal. Estão lá megassigmoide, megassismo e megassoma.
Megassena ficará entre elas. Não haverá dúvidas também sobre a
grafia de seminovo, que não está no Volp por provável esquecimento.
Surgirá por certo no futuro ao lado de seminorma, seminota,
seminu e outras com semi- aglutinado ao segundo elemento iniciado
por consoante.
E jogo-treino? Ou será jogo treino? É um composto? Um encadeamento
vocabular? Saberá o homem comum, como o chama Bechara, distinguir
uma coisa da outra? E quando se tratar de formação por prefixação,
recomposição e sufixação? E como conseguirá identificar uma unidade
fraseológica constitutiva de lexia nominalizada? Com ou sem hífen? É
exceção? Ai do homem comum. E do incomum também, se houver.
Nos casos omissos, quem será capaz de identificar alguns compostos em
relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição
para grafá-los aglutinadamente? Não o homem comum, por certo.
Conclui-se que jogo treino aparecerá sem hífen em futuras edições do
Volp, pois jogo da bola, jogo da glória, jogo da velha e jogo
do homem, antes hifenados, estão sem hífen. Mas não há jogo do
galo, sinônimo de jogo da velha. Questão de analogia, portanto.
Também não há bem-passado, embora malpassado lá esteja. Verdade
que bem-passado não consta dos dicionários anteriores ao Acordo. Mas
conclui-se que a grafia é bem-passado. Talvez fosse o caso de
incluir os antônimos das formações presentes no Volp. Lá estão
bem-mandado, bem-nascido, bem-posto, bem-vestido, bem-visto etc.
Estranheza
Os editores terão de acrescentar formações como fio terra, meia
bomba, lava a jato, lava rápido. Não basta que o homem comum
fique com a suposição de que, se o encadeamento vocabular não está no
Volp, não tem hífen. Nem basta supor que se não havia hífen antes não
haverá agora. Mesmo porque pôr de sol e pôr do sol estão ali
alinhados, a mostrar que seus hifens foram derrubados pelo Acordo.
Casos como do verbo soto-pôr causam estranheza. Antes do Acordo, foi
eternizado sotopor. O Volp alinha soto-pôr e abaixo sotoposto.
Significa que o hífen desaparecerá nas formas conjugadas? O Acordo
define que os prefixos ex-, sota-, soto-, vice- e vizo- serão unidos
por hífen ao segundo elemento.
Com o monstrengo léxico soto--pôr, a comissão da ABL achou melhor
ser fiel à letra do Acordo e ignorar a tradição lexicográfica. Mas em
coerdeiro ignorou o Acordo, que aponta co-herdeiro, e ficou com a
forma aglutinada sem h, como em coabitar, coabitação,
coabitante, seguindo a tradição. Seguiu a tradição com o prefixo
re-, que se junta ao segundo elemento iniciado por e: reeditar,
reeleger etc. Assim evitou deformações como irre-elegível. Mas
preferiu ser obediente ao Acordo com soto-por. Por quê não
sotopor? Não por falta de tradição, porque o primeiro registro é de
1572, diz o Houaiss. E o dicionário de Moraes Silva, de 1813, o
registra numa só palavra, como desde então em nossos dicionários.
Caberá revisão?
Prefixos
Alguns autores estranham casos como o do prefixo tele-, que se liga
por hífen ao segundo elemento iniciado por e, regra clara. O Volp, no
entanto, registra telespectador, telespetáculo, teleducação,
teleducando e outras crases que atropelam a regra. São exceções
assinaladas por Bechara nos livros A Nova Ortografia e O Que Muda com
o Novo Acordo Ortográfico. Em nota explicativa da Base XVI, que trata
do hífen quando o primeiro elemento termina por vogal igual à que
inicia o segundo elemento, diz ele em O Que Muda...:
O encontro de vogais iguais tem facilitado o aparecimento de formas
reais ou potencialmente possíveis com crase, do tipo de
alfaglutinação, ao lado de alfa-aglutinação; ovadoblongo, ao lado de
ovado-oblongo. Para atender à regra geral de hifenizar o encontro de
vogais iguais, é preferível evitar possíveis crases no uso corrente,
ressalvados os casos em que elas se mostram naturais, e não forçadas,
como ocorre em telespectador (e não tele-espectador), radiouvinte (e
não rádio-ouvinte).
Se não constar das exceções (tele-entrega não consta), sua grafia
será com hífen, embora não apareça no Volp, que traz teleducação e
teleducando. O que talvez ocorra com tele-entrega é que os
dicionários registrem duas formas, como fazem com
teleducaçãotele-educação, teleducandotele-educando. A não
ser que não a tenham registrado por ser mal formada e por causa do
significado movediço. O que significa tele-entregar? Entregar pedido
feito por telefone ou entregar algum pedido por telefone, coisa ainda
inimaginável? Conclui-se que a palavra não faz falta a ninguém.
Não e quase
Outra curiosidade é a da Nota explicativa do Volp, página LIII. O
Acordo excluiu o hífen quando as palavras não e quase agem como
prefixos. Agora é não agressão, não fumante, quase delito,
quase irmão. Estranho, no entanto, é o penúltimo parágrafo da Nota:
Está claro que, para atender a especiais situações de expressividade
estilística com a utilização de recursos ortográficos, se pode
recorrer ao emprego do hífen nestes e em todos os outros casos que o
uso permitir. É recurso a que se socorrem muitas línguas. Deste não
hifenado se serviram no alemão Ficthe e Hegel para exercer importante
função significativa nas respectivas terminologias filosóficas;
nicht-sein e nicht-ich, de que outros idiomas europeus se apropriaram
como calços linguísticos. Não é, portanto, recursos para ser
banalizado.
Aí, o professor Bechara foi longe. Quem escrever algo que ache
importante, e quiser hífen em formações com não e quase para
realçá-las, poderá fazê-lo.
Distrações, curiosidades, oscilações... Bem que Bechara previu que,
apesar do esforço, os editores do Volp sofreriam críticas de quem
procura erros alheios, hábito muito ruim: Temos de fazer o melhor
possível, mas de qualquer jeito vamos apanhar muito.
Nem tanto.
As dúvidas ortográficas
Aspectos que faltam ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa
OMISSÕES
Bem-passado
Duplassena
Fio terra Jogo treino
Jogo do galo
Lava a jato
Lava rápido
Megassena
Meia bomba Seminovo
CORREÇÕES
Coa (sairá sem acento)
Água-de-coco (sairá com hífen)
PLURAL DE COMPOSTOS COM PALAVRAS IGUAIS
O plural de nomes compostos por palavras repetidas ou onomatopaicas
deixa dúvidas no Volp. A regra básica é que só o segundo elemento
varia: corre-corre, corre-corres; pisca-pisca, pisca-piscas;
reco-reco, reco-recos; tico-tico, tico-ticos; tique-taque,
tique-taques; toque-toque, toque-toques; vira-vira, vira-viras.
Mas dicionários registram variantes populares, como corres-corres,
piscas--piscas. O Volp incorpora formas como piscas-piscas com
pisca-piscas; vira-viras com viras-vira e mantém a forma única
de dois números para esconde-esconde. Portanto, o esconde-esconde
e os esconde-esconde.