Na queda que temos pelo apóstrofo revelamos nossa rendição ao charme americano
Toda vez que se fala em antiamericanismo, no Brasil, dá vontade de contra-atacar com o apóstrofo. Muita gente não gostou da presença de George W. Bush no país, mas esse sentimento é largamente superado pelo amor que temos pelo apóstrofo. O apóstrofo em questão, para os leitores que ainda não se deram conta, é aquele sinalzinho () que na língua inglesa se põe antes do s (s). Quanto charme num pequenino sinal gráfico! Bush se sentiria vingado das manifestações de protesto se lhe fosse permitido caminhar por uma rua comercial brasileira e verificar quantos nomes de estabelecimentos são, em primeiro lugar, em língua inglesa e, em segundo, ostentam como rabicho o s. Somos apaixonados pelo s. O que é uma forma de expressar nosso amor e respeito pelos Estados Unidos.
Se o Brasil é antiamericano ou, ao contrário, americanófilo – e até o mais americanófilo dos países – é questão aberta. Da boca para fora, somos antiamericanos. As pesquisas de opinião vão revelar sempre uma maioria crítica aos EUA. Na era Bush, então, nem se fala. Lá no fundo, no entanto, é só contemplar um s e um coração brasileiro baterá mais forte. Poucos países, fora os de língua inglesa, terão tantas lojas, produtos, serviços ou eventos batizados em inglês. Isso vale tanto para o mundo dos ricos – o do serviço bancário chamado prime e o do evento chamado Fashion Week – quanto para o dos pobres, que encontram a seu dispor a lanchonete X Point. Quando enfeitados pelo s, os nomes adquirem superior requinte. Comprar na Baccos, em São Paulo, ou bebericar no Leos Pub, no Rio, não teria o mesmo efeito se o nome desses estabelecimentos não ostentasse aquele penduricalho, delicado como jóia, civilizado como o frio.
O professor Antonio Pedro Tota, que entende do assunto (é autor de O Imperialismo Sedutor: a Americanização do Brasil na Época da II Guerra), explica, em artigo numa recém-lançada publicação do Wilson Center dedicada às relações Brasil-EUA, que a definitiva prova de que os americanos tinham nos ganhado, naqueles anos de combate contra o nazifascismo e o Japão, foi a adoção, pelos brasileiros, do gesto do polegar para cima, o sinal do positivo. Tota recorre a Luís da Câmara Cascudo, estudioso dos gestos dos brasileiros, para explicar a origem do polegar para cima. Na base aérea que, por concessão do governo brasileiro, os americanos montaram no Rio Grande do Norte, para de lá atacar o norte da África, os pilotos e mecânicos, uns dentro e outros fora dos aviões, e ainda por cima ensurdecidos pelo ruído dos motores, comunicavam-se erguendo o polegar, thumbs up, para dizer uns aos outros quando tudo estava em ordem.
O gesto encantou os brasileiros que serviam de pessoal de apoio. Ainda mais que era muito útil para a comunicação com os estrangeiros. Isso de levantar ou abaixar o polegar tem origem remota e era usado em Roma para indicar se um gladiador devia ser poupado ou morto. Mas no Brasil, segundo Câmara Cascudo, chegou com os pilotos americanos, e da base aérea se espalhou pelo Nordeste e logo por todo o Brasil. Era tão moderno, tão viril, tão americano! O mesmo autor diz que o polegar para cima causou a desgraça do da pontinha da orelha. Para indicar uma coisa boa, antes, os brasileiros seguravam a ponta da orelha, gesto aprendido dos portugueses. Perto do polegar para cima, soava tão antigo, tão da vovó, tão efeminado!
As pequenas coisas dizem muito mais do que os altissonantes falatórios. A vitória do gesto de positivo sobre o da pontinha da orelha significou, naquele momento decisivo da II Guerra, o abandono do que restasse da herança lusitana, tão singela, tão curta de horizontes, tão caseira, em favor da perseguição do modelo americano, tão valente, tão desprendido, tão sintonizado no futuro. Da mesma forma, o apego a essa outra coisa miúda que é o apóstrofo representa nossa rendição aos poderes de sedução americanos. Bares modestos, Brasil afora, anunciam que servem drinks. Não venha o leitor observar que está errado, que esse s nada tem a ver com o caso possessivo da língua inglesa. O inglês de nossas ruas não é o de Shakespeare. É o inglês recriado no Brasil, como em motoboy. O s de drinks está lá talvez para indicar plural, mas com certeza para conferir beleza e vigor americanos ao ato, de outra forma banal, de avisar os clientes de que ali se servem bebidas.
O emprego do s Brasil afora é muito peculiar, e quem sair à cata das várias formas em que é encontrado terminará com uma rica coleção. O colunista que vos fala tem especial queda por dois exemplares, entre os muitos com que, como todos nós, já deparou. Um é o nome, sem dúvida sugestivo – e, mais que sugestivo, inspirador – de um motel nos arredores de Florianópolis: Erectus. Outro é o de um salão de beleza de uma cidade vizinha a São Paulo: Skovas. São nomes que, enquanto explodem de brasileira inventividade, prestam homenagem aos EUA.