MUDANÇAS ORTOGRÁFICAS NO HORIZONTE

Carlos Alberto Faraco*

Em tese, as mudanças ortográficas previstas no Acordo assinado pelos países lusófonos em 1990 começam, finalmente, a vigorar.


1. Entenda o caso:

A língua portuguesa tem dois sistemas ortográficos: o português (adotado também pelos países africanos e pelo Timor) e o brasileiro.
Essa duplicidade decorre do fracasso do Acordo unificador assinado em 1945: Portugal adotou, mas o Brasil voltou ao Acordo de 1943.
As diferenças não são substanciais e não impedem a compreensão dos textos escritos numa ou noutra ortografia. No entanto, considera-se que a dupla ortografia dificulta a difusão internacional da língua (por exemplo, os testes de proficiência têm de ser duplicados), além de aumentar os custos editoriais, na medida em que o mesmo livro, para circular em todos os territórios da lusofonia, precisa normalmente ter duas impressões diferentes. O Dicionário Houaiss, por exemplo, foi editado em duas versões ortográficas para poder circular também em Portugal e nos outros países lusófonos. Podemos facilmente imaginar quanto custou essa “brincadeira”.
Essa situação estapafúrdia motivou um novo esforço de unificação que se consolidou no Acordo Ortográfico assinado em Lisboa em 1990 por todos os países lusófonos. Na ocasião, estipulou-se a data de 1 de janeiro de 1994 para a entrada em vigor da ortografia unificada, depois de o Acordo ser ratificado pelos parlamentos de todos os países.
Contudo, por várias razões, o processo de ratificação não se deu conforme o esperado (só o Brasil e Cabo Verde o realizaram)  e o Acordo não pôde entrar em vigor.
Diante dessa situação, os países lusófonos, numa reunião conjunta em 2004, concordaram que bastaria a manifestação ratificadora de três dos oito países para que o Acordo passasse a vigorar.
Em novembro de 2006, São Tomé e Príncipe ratificou o Acordo. Desse modo, ele, em princípio, está vigorando e deveríamos colocá-lo em uso.
No entanto, estamos ainda em compasso de espera. Há um certo temor de que sem um consenso efetivo o Acordo acabe se frustrando. O secretário-executivo da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa esteve no Brasil em março passado buscando apoio para obter, sem mais delongas, a ratificação do Acordo pelos demais cinco países.
Talvez por isso o governo brasileiro não tenha ainda tomado qualquer medida para implementar as mudanças ortográficas, embora o Brasil tenha sido desde o início o maior defensor da unificação.

Observação importante
A mídia costuma apresentar o Acordo como uma unificação da língua. Há, nessa maneira de abordar o assunto, um grave equívoco. O Acordo não mexe na língua (nem poderia, já que a língua não é passível de ser alterada por leis, decretos e acordos) – ele apenas unifica a ortografia.
Algumas pessoas – por absoluta incompreensão do sentido do Acordo e talvez induzidas por textos imprecisos da imprensa – chegaram a afirmar que a abolição do trema (prevista pelo Acordo) implicaria a mudança da pronúncia das palavras (não diríamos mais o u de lingüiça, por exemplo). Isso não passa de um grosseiro equívoco: o Acordo só altera a forma de grafar algumas palavras. A língua continua a mesma. 


2. As mudanças

As mudanças, para nós brasileiros, são poucas. Alcançam a acentuação de algumas palavras e operam algumas simplificações  nas regras de uso do hífen.

2.1. Acentuação

a) fica abolido o trema:

palavras como lingüiça, cinqüenta, seqüestro passam a ser grafadas linguiça, cinquenta, sequestro;

b) desaparece o acento circunflexo do primeiro ‘o’ em palavras terminadas em ‘oo’:

palavras como vôo, enjôo, abençôo passam a ser grafadas voo, enjoo, abençoo; 

c) desaparece o acento circunflexo das formas verbais da terceira pessoa do plural terminadas em –eem:

palavras como lêem, dêem, crêem, vêem passam a ser grafadas leem, deem, creem, veem;

d) deixam de ser acentuados os ditongos abertos éi e ói das palavras paroxítonas:

palavras como idéia, assembléia, heróico, paranóico passam a ser grafadas ideia, assembleia, heroico, paranoico;

e) fica abolido, nas palavras paroxítonas, o acento agudo no i e no u tônicos quando precedidos de ditongo :

palavras como feiúra, baiúca passam a ser grafadas feiura, baiuca;

f) fica abolido, nas formas verbais rizotônicas (que têm o acento tônico na raiz), o acento agudo do u tônico precedido de g ou q e seguido de e ou i.

Essa regra alcança algumas poucas formas de verbos como averiguar, apaziguar, arg(üu)ir: averigúe, apazigúe e argúem passam a ser grafadas averigue, apazigue, arguem;

g) deixa de existir o acento agudo ou circunflexo usado para distinguir palavras paroxítonas que, tendo respectivamente vogal tônica aberta ou fechada, são homógrafas de palavras átonas. Assim, deixam de se distinguir pelo acento gráfico:
– para (á), flexão do verbo parar, e para, preposição;
– pela(s) (é), substantivo e flexão do verbo pelar, e pela(s), combinação da preposição per e o artigo a(s);
– polo(s) (ó), substantivo, e polo(s), combinação antiga e popular de por e lo(s);
– pelo (é), flexão de pelar, pelo(s) (ê), substantivo, e pelo(s) combinação da preposição per e o artigo o(s);
– pera (ê), substantivo (fruta), pera (é), substantivo arcaico (pedra) e pera preposição arcaica.


Observação 1

A reforma de 1971 aboliu os acentos circunflexos diferenciais. Manteve apenas para a forma verbal ‘pôde’. O texto do Acordo mantém esta exceção e acrescenta, facultativamente, o uso do acento na palavra fôrma.

Observação 2

O Acordo manteve a duplicidade de acentuação (acento circunflexo ou acento agudo) em palavras como econômicoeconómico, acadêmicoacadémico, fêmurfémur, bebêbebé.
Entendeu-se que, como esta acentuação reflete o timbre fechado (mais freqüente no Brasil) e o timbre aberto (mais freqüente em Portugal e nos demais países lusófonos) das pronúncias cultas das vogais nestes contextos, ela não deveria ser alterada.
Em princípio nada muda para nós brasileiros. A novidade é que as duas formas passam a ser aceitas em todo o território da lusofonia e devem ambas constar dos dicionários. Assim, se um brasileiro, que hoje é obrigado a usar o acento circunflexo, grafar com o agudo não estará cometendo erro gráfico.

Observação para os especialistas:

Do nosso atual Formulário Ortográfico, o Acordo aboliu as seguintes regras de acentuação gráfica:  5ª, 6ª, 10ª, 12ª, a quase totalidade da 15ª, a observação 3ª da regra 7ª e parte da observação 1ª da antiga regra 14ª (esta regra foi abolida pela reforma de 1971. O Acordo abole a acentuação das paroxítonas prevista na observação 1ª).


2.2 O caso do hífen

O hífen é, tradicionalmente, um sinal gráfico mal sistematizado na ortografia da língua portuguesa. O texto do Acordo tentou organizar as regras de modo a tornar seu uso mais racional e simples:

a) manteve sem alteração as disposições anteriores sobre o uso do hífen  nas palavras e expressões compostas. Determinou apenas que se grafe de forma aglutinada certos compostos nos quais se perdeu a noção de composição (mandachuva e paraquedas, por exemplo).
              Para saber quais perderão o hífen, teremos de esperar a publicação do novo Vocabulário Ortográfico pela Academia das Ciências de Lisboa e pela Academia Brasileira de Letras. É que o texto do Acordo prevê a aglutinação, dá alguns exemplos e termina o enunciado com um etc. – o que, infelizmente, deixa em aberto a questão;


b) no caso de palavras formadas por prefixação, houve as seguintes alterações:
    
• só se emprega o hífen quando o segundo elemento começa por h

     Ex.: pré-história, super-homem, pan-helenismo, semi-hospitalar

Exceção: manteve-se a regra atual que descarta o hífen nas palavras formadas com os prefixos des- e in- e nas quais o segundo elemento perdeu o h inicial (desumano, inábil, inumano).

• e quando o prefixo termina na mesma vogal com que se inicia o segundo elemento

Ex.: contra-almirante, supra-auricular, auto-observação, micro-onda, infra-axilar

Exceção: manteve-se a regra atual em relação ao prefixo co-, que em geral se aglutina com o segundo elemento mesmo quando iniciado por o (coordenação, cooperação, coobrigação)


Com isso, ficou abolido o uso do hífen:

• quando o segundo elemento começa com s ou r, devendo estas consoantes ser duplicadas

Ex.: antirreligioso, antissemita, contrarregra, infrassom.

Exceção: manteve-se o hífen quando os prefixos terminam com r, ou seja, hiper-, inter- e super- 

Ex.: hiper-requintado, inter-resistente, super-revista.
 
• quando o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa com uma vogal diferente

Ex.: extraescolar, aeroespacial, autoestrada, autoaprendizagem, antiaéreo, agroindustrial, hidroelétrica

 

 

Observação

Permanecem inalteradas as demais regras do uso do hífen.


2.3. O caso das letras k, w, y

Embora continuem de uso restrito, elas ficam agora incluídas no nosso alfabeto, que passa, então, a ter 26 letras.
Importante deixar claro que essa medida nada altera do que está estabelecido. Apenas fixa a seqüência dessas letras para efeitos da listagem alfabética de qualquer natureza. Adotou-se a convenção internacional: o k vem depois do j, o w depois do v e o y depois do x.


2.4. O caso das letras maiúsculas

Se compararmos o disposto no Acordo com o que está definido no atual Formulário Ortográfico brasileiro, vamos ver que houve uma simplificação no uso obrigatório das letras maiúsculas. Elas ficaram restritas a nomes próprios de pessoas (João, Maria, Dom Quixote), lugares (Curitiba, Rio de Janeiro), instituições (Instituto Nacional da Seguridade Social, Ministério da Educação) e seres mitológicos (Netuno, Zeus), a nomes de festas (Natal, Páscoa, Ramadão), na designação dos pontos cardeais quando se referem a grandes regiões (Nordeste, Oriente), nas siglas (FAO, ONU), nas iniciais de abreviaturas (Sr., Gen. V. Exª) e nos títulos de periódicos (Folha de S. Paulo, Gazeta do Povo).
Ficou facultativo usar a letra maiúscula nos nomes que designam os domínios do saber (matemática ou Matemática), nos títulos (Cardealcardeal Seabra, Doutordoutor Fernandes, Santasanta Bárbara) e nas categorizações de logradouros públicos (Ruarua da Liberdade), de templos (Igrejaigreja do Bonfim) e edifícios (Edifícioedifício Cruzeiro).

2.5. Uma curiosa (e infeliz) determinação
Alegando que o sujeito de uma sentença não pode ser preposicionado, há uma certa tradição gramatical que proíbe, na escrita, a contratação da preposição com o artigo ou com o pronome em sentenças como:
Não é fácil de explicar o fato de os professores ganharem tão pouco.
É tempo de ele sair.
Nem todos os gramáticos subscrevem tal proibição. Evanildo Bechara, por exemplo, argumenta, em sua Moderna gramática portuguesa (Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2000, p. 536-7), que ambas as construções são corretas e cita o uso da contração em vários escritores clássicos da língua. No entanto, há uma cláusula do Acordo Ortográfico que adota aquela proibição. Assim, cometeremos, a partir da vigência do Acordo, erro gráfico se fizermos a contração. Parece que alguns filólogos não conseguem mesmo viver sem cultivar alguma picuinha...  

2.6. Apreciação Geral
O Acordo é, em geral, positivo. Em primeiro lugar porque unifica a ortografia do português, mesmo mantendo algumas duplicidades. Por outro lado, simplifica as regras de acentuação, limpando o Formulário Ortográfico de regras irrelevantes e que alcançam um número muito pequeno de palavras. A simplificação das regras do hífen é também positiva: torna um pouco mais racional o uso deste sinal gráfico.

*Professor Titular (aposentado) de Lingüística e Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná. Membro da Comissão para a Definição da Política de Ensino-Aprendizagem, Pesquisa e Promoção da Língua Portuguesa do Ministério da Educação.

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Texto publicado na minha coluna no site da Rádio CBN de Curitiba:
www.cbncuritiba.com.br

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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