Artigo: Reinaldo Azevedo

A reforma ortográfica que se pretende é um pequeno
passo (atrás) para os países lusófonos e um grande
salto para quem vai lucrar com ela. O assunto me
enche, a um só tempo, de indignação e preguiça. O
Brasil está na vanguarda dessa militância estúpida.
Por que estamos sempre fazendo tudo pelo avesso? Não
precisamos de reforma nenhuma. Precisamos é de
restauração. Explico-me.

A moda chegou por aqui na década de 70, espalhou-se
como praga divina e contribuiu para formar gerações de
analfabetos funcionais: as escolas renunciaram à
gramática e, em seu lugar, passaram a ensinar uma
certa Comunicação e Expressão, pouco importando o
que isso significasse conceitualmente em sua grosseira
redundância. Na prática, o aluno não precisava mais
saber o que era um substantivo; bastava, dizia-se, que
soubesse empregá-lo com eficiência e, atenção para a
palavra mágica, criatividade. As aulas de sintaxe –
sim, leitor, a tal análise sintática, lembra-se? –
cederam espaço à interpretação de texto, exercício
energúmeno que consiste em submeter o que se leu a
perífrases – reescrever o mesmo, mas com excesso de
palavras, sempre mais imprecisas. O ensino crítico do
português foi assaltado pelo chamado uso criativo da
língua. Para ser didático: se ela fosse pintura, em
vez de ensinar o estudante a ver um quadro, o
professor se esforçaria para torná-lo um Rafael ou um
Picasso. Se fosse música, em vez de treinar o seu
ouvido, tentaria transformá-lo num Mozart ou num
Beethoven. Como se vê, era o anúncio de um desastre.

Os nossos Machados de Assis, Drummonds e Padres
Vieiras do povo não apareceram. Em contrapartida, o
analfabetismo funcional expandiu-se célere. Se fosse
pintura, seria garrancho. Se fosse música, seria a do
Bonde do Tigrão. É só gramática o que falta às nossas
escolas? Ora, é certo que não. O país fez uma opção –
ainda em curso e atravessando vários governos, em
várias esferas – pela massificação de ensino, num
entendimento muito particular de democratização: em
vez de se criarem as condições para que, vá lá, as
massas tivessem acesso ao conhecimento superior,
rebaixaram-se as exigências para atingir índices
robustos de escolarização. Na prova do Enem aplicada
no mês passado, havia uma miserável questão próxima da
gramática. Se Lula tivesse feito o exame, teria
chegado à conclusão de que a escola, de fato, não lhe
fez nenhuma falta. Isso não é democracia, mas
vulgaridade, populismo e má-fé.

Não é só a língua portuguesa que está submetida a esse
vexame, é claro. As demais disciplinas passaram e
passam pela mesma depredação. A escola brasileira é
uma lástima. Mas é nessa área, sem dúvida, que a
mistificação atingiu o estado de arte. Literalmente.
Aulas de português se transformam em debates, em que o
aluno é convidado (santo Deus!) a fazer, como eles
dizem, colocações e a se expressar. Que diabo! Há
gente que não tem inclinação para a pintura, para a
música e para a literatura. Na verdade, os talentos
artísticos são a exceção, não a regra. Os nossos
estudantes têm de ser bons leitores e bons usuários da
língua formal. E isso se consegue com o ensino de uma
técnica, que passa, sim, pela conceituação, pela
famigerada gramática. Precisamos dela até para
entender o Virundum. Veja só:

Ouviram do Ipiranga
as margens plácidas
De um povo heróico
o brado retumbante

Quem ouviu o quê e onde, santo Deus? É as margens
plácidas ou às margens plácidas? É perfeitamente
possível ser feliz, é certo, sem saber que foram as
margens plácidas do Rio Ipiranga que ouviram o brado
retumbante de um povo heróico. Mas a felicidade,
convenham, é um estado que pode ser atingido ignorando
muito mais do que o hino. À medida que se renuncia às
chaves e aos instrumentos que abrem as portas da
dificuldade, faz-se a opção pelo mesquinho, pelo
medíocre, pelo simplório.

As escolas brasileiras, deformadas por teorias avessas
à cobrança de resultados – e o esquerdista Paulo
Freire (1921-1997) prestou um desserviço gigantesco à
causa –, perdem-se no proselitismo e na exaltação do
chamado universo do educando. Meu micro ameaçou
travar em sinal de protesto por escrever essa
expressão máxima da empulhação pedagógica. A origem da
palavra educação é o verbo latino duco, que
significa conduzir, guiar por um caminho. Com o
acréscimo do prefixo se, que significa afastamento,
temos seduco, origem de seduzir, ou seja,
desviar do caminho. A educação, ao contrário do
que prega certa pedagogia do miolo mole, é o contrário
da sedução. Quem nos seduz é a vida, são as suas
exigências da hora, são as suas causas contingentes,
passageiras, sem importância. É a disciplina que nos
devolve ao caminho, à educação.

Professores de português e literatura vivem hoje
pressionados pela idéia de seduzir, não de educar.
Em vez de destrincharem o objeto direto dos catorze
primeiros versos que abrem Os Lusíadas, apenas o texto
mais importante da língua portuguesa, dão um pé no
traseiro de Camões (1524-1580), mandam o poeta caolho
cantar sua namoradinha chinesa em outra barcarola e
oferecem, sei lá, facilidades da MPB – como se a
própria MPB já não fosse, em nossa esplêndida
decadência, um registro também distante das massas.
Mas nunca deixem de contar com a astúcia do governo
Lula. Na citada prova do Enem, houve uma
modernização das referências: em vez de Chico
Buarque, Engenheiros do Hawaii; em vez de Caetano
Veloso, Titãs. Na próxima, é o caso de recorrer ao
funk de MC Catra: O bagulho tá sério vai rolar o
adultério paran, paran, paran paran, paran....

Precisamos de restauração, não de mais mudanças. Veja
acima, no par de palavras educaçãosedução, quanto o
aluno perde ao ser privado da etimologia, um
conhecimento fascinante. As reformas ortográficas,
acreditem, empobrecem a língua. Não democratizam, só
obscurecem o sentido. Uma coisa boba como cassar o p
de exce(p)ção cria ao leitor comum dificuldades para
que perceba que ali está a raiz de excepcional;
quantos são os brasileiros que relacionam caráter a
característica – por que deveriam os portugueses
abrir mão do seu carácter? O que um usuário da nossa
língua perderia se, em vez de ciência, escrevesse
sciência, o que lhe permitiria reconhecer na palavra
consciência aquela mesma raiz?

Veja o caso do francês, uma língua que prima não por
letras, mas por sílabas inúteis, não pronunciadas.
E, no entanto, os sempre revolucionários franceses
fizeram a opção pela conservação. Uma proposta recente
de reforma foi unanimemente rejeitada, à direita e à
esquerda. Foi mais fácil cortar cabeças no país do que
letras. A ortografia de Voltaire (1694-1778) está mais
próxima do francês contemporâneo do que está Machado
de Assis do português vigente no Brasil. O ditador
soviético Stálin (1879-1953) era metido a lingüista.
Num rasgo de consciência sobre o mal que os comunistas
fizeram, é dono de uma frase interessante: Fizemos a
revolução, mas preservamos a bela língua russa. Ora,
dirão: este senhor é um mau exemplo. Também acho. O
diabo é que ele se tornou referência de política, não
de conservação da língua...

Já que uma restauração eficaz é, eu sei, inviável,
optemos ao menos pela educação, não por uma nova e
inútil reforma. O pretexto, ademais, é energúmeno.
Como escreveu magnificamente o poeta português
Fernando Pessoa (1888-1935), houve o tempo em que a
terra surgiu, redonda, do azul profundo, unida pelo
mar das grandes navegações. Um mar portuguez (ele
grafou com z). Hoje, os países lusófonos estão
separados pela mesma língua, que foi se fazendo
história. A unidade só tem passado. E nenhum futuro.

Categoria pai: Seção - Notícias

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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