Opção entre um pau-de-arara como transporte escolar ou maratonas a pé para chegar às salas ilustra as enormes dificuldades que abatem os alunos das zonas rurais. Distorções cidadecampo são gigantescas
Paloma Oliveto
Fonte: Correio Braziliense
Fotos: Ronaldo de OliveiraCB | |
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Canavial virou o playground de Eduardo, 15 anos. Menino deixou a escola no início do ano, ainda na 5ª série
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Pau-de-arara: sem cinto de segurança, esburacado, mas coberto
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Quixadá (CE) — Pau-de-arara, segundo o Dicionário Houaiss: 1. suporte de madeira no qual os sertanejos conduzem araras, papagaios e outras aves trepadoras, para vender; 2. instrumento de tortura que consiste num pau roliço em que o torturado é pendurado pelos joelhos e cotovelos flexionados; cambau; 3. caminhão que transporta retirantes nordestinos. Pau-de-arara, segundo Maria de Fátima Queiroz, 16 anos, moradora de Quixadá, a 167km de Fortaleza: carro velho e esburacado que a conduz à escola.
Moradora de São Luiz, zona rural de Quixadá, a estudante do 1º ano do ensino médio perdeu as contas de quantas vezes teve de descer do pau-de-arara para pegar o material escolar. “Olha só esse buraco. Cai livro, cai caderno, cai tudo”, conta. As ripas de madeira são uma ameça à segurança dos adolescentes que, por falta de escola no campo, precisam se deslocar para a cidade em busca de educação. Maria acorda às 4h para chegar ao colégio três horas depois. “Antes estava pior. Não tinha lona. No inverno, a gente tomava um banho danado”, diz. E o transporte é apenas um dos desafios enfrentados por crianças e jovens da zona rural para terem direito à educação.
Diante das dificuldades, não são poucos os que abandonam a escola, mesmo com o apelo financeiro do Bolsa Família. “As diferenças em termos de escolaridade média das populações rural e urbana são acentuadas em todas as regiões do país. Mesmo na Região Sul, que apresenta a maior média de anos de estudo para a população rural (5 anos), prevalece um hiato de 2,7 anos de estudo em relação à população urbana”, reconhece o estudo Panorama da Educação no Campo, publicado neste ano pelo Ministério da Educação.
“O quadro é mais crítico no Nordeste, onde a população rural com 15 anos ou mais tem em média 3,1 anos de estudo, o que equivale a menos da metade da escolaridade média da população urbana (6,3 anos).” A publicação do MEC revela um futuro nada promissor para os 30,8 milhões de brasileiros que vivem no campo: “Se considerarmos que o aumento de um ano de estudo para o conjunto da população leva em torno de uma década, mantido o padrão histórico, a população rural levaria mais de 30 anos para atingir o atual nível de escolaridade da população urbana. Isso dá uma medida da brutal disparidade existente entre as populações urbana e rural em termos de escolaridade”.
Salto Em Quixadá, onde vive Maria de Fátima, houve aumento da evasão escolar entre 2001 e 2005. Na zona rural, as taxas são mais graves. Se, na área urbana, o abandono da 1ª série do ensino fundamental pulou de 6,5% em 2001 para 7% quatro anos depois, na rural, o salto foi de 6,5% para 10,3%. Outro problema é a distorção idade-série: cerca de 41,4% dos alunos do ensino fundamental têm idade superior à adequada. No nível médio, o índice passa para 59,1%, de acordo com o MEC.
Morador da área rural de Ibateguara, em Alagoas, Eduardo Sebastião da Silva, 15 anos, estava na 5ª série do ensino fundamental no início do ano, quando decidiu sair da escola. Pela idade, já deveria cursar o 1º ano do nível médio. “Eu estava com preguiça de estudar. Português é muito ruim, me fez repetir de ano várias vezes”, diz o garoto, que é semi-analfabeto. Dos cinco irmãos, três abandonaram a escola antes de concluir os estudos. A mãe, cozinheira da escola onde Eduardo estudava, beneficiária do Bolsa Família, terminou a 5ª série e insiste para que o menino volte à sala de aula. “Não volto não. Se bem que ela diz que, quando eu ficar mais velho, vou me arrepender. Até agora, não me arrependi”, conta Eduardo, sentado no chão de um canavial alagoano.
“Criminoso” Para a presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Maria Auxiliadora Seabra Rezende, o que ocorre, hoje, no ensino rural é “criminoso”. Ela lembra que, assim como Maria de Fátima, muitos estudantes precisam viajar quilômetros para chegar à escola, pois não há estabelecimentos suficientes no campo. “A criança chega à escola cansada, com sono, fome. Que rendimento pode ter? É uma situação que tem de ser enfrentada com políticas públicas. Não podemos fechar os olhos para isso”, diz.
Segundo Maria Auxiliadora, o Ministério da Educação tem mostrado boa vontade no combate às distorções cidadecampo. “O problema é que por muitos anos a educação rural não esteve nas mãos do MEC, mas do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDS)”, diz. “Agora, é preciso ter coragem para discutir um currículo próprio para o campo. Os meninos que moram na zona rural e estudam na cidade voltam para o campo sem agregar nada.” A presidente do Consed defende articulação entre movimentos sociais, MEC e MDS para discutir uma política específica.
“O ensino básico no campo produz analfabetos”, acusa a pesquisadora Sônia Pereira Barreto, do Núcleo de Movimentos Sociais, Educação Popular e Escola, da Universidade do Ceará. Ela desenvolve um estudo em cidades do Ceará, com enfoque na educação de jovens e adultos. A principal conclusão, até agora, é que não existe uma política de ensino para o campo. “O Estado está ausente. Não há metodologia nem material específicos, os profissionais não têm formação, dependem de um esforço pessoal muito grande”, diz.
O sociólogo Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, lamenta que o Brasil desperdice uma linha pedagógica criada no próprio país, por Paulo Freire, pela qual o aluno aprende a partir de sua realidade social. “A escola rural não é pensada para o campo. É completamente ineficiente”, diz. O Correio acompanhou parte de uma aula no Grupo Escolar Heráclito Rêgo, zona rural de Queimadas (PB). O assunto do dia era história do Brasil Império. Dos 14 alunos que estavam na sala, com idades entre 7 e 17 anos, dois prestavam atenção ao que dizia a professora. Os outros dormiam. | |
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