Confira a introdução do Folha Explica Chico Buarque:

Não é preciso insistir na importância de Chico Buarque para a cultura brasileira. Ninguém duvida dela. Sua atividade como artista, que se estende por quatro décadas e segue muito afiada, já legou ao país uma obra muito extensa e diversificada, mas ao mesmo tempo muito coesa e coerente. As dificuldades de quem pretende se aproximar dela começam por aí: como puxar o fio que a atravessa do início ao fim sem desdenhar suas complexidades, suas modulações, suas sutilezas, suas variações no tempo?

De nenhum outro compositor ou escritor contemporâneo talvez se possa dizer que a história do Brasil, de 1964 até hoje, passa por dentro de sua obra. É exatamente essa a sensação que nos transmite o contato com a criação de Chico. Ela não apenas registra a nossa história, como freqüentemente a revela para nós sob ângulos insuspeitados, amarrando e comunicando a experiência coletiva aos segredos e abismos da subjetividade de cada um. É o inconsciente do país que parece falar na rede simbólica que Chico nos estendeu ao longo dos anos.

Estas páginas não pretendem ser uma biografia, embora contenham elementos da vida do autor e se fixem em algumas passagens marcantes de sua trajetória. Não são, tampouco, uma análise de viés acadêmico. É curioso, aliás, notar como a universidade, no caso de Chico, tende a mimetizar as clivagens do mercado e a tratar sua obra de forma fragmentada - ou, melhor, fatiada. Fala-se muito em Chico e a política, Chico e o feminino, Chico e a malandragem.

Este livro foi pensado desde o início como um ensaio, uma tentativa parcial de interpretação do autor e de sua obra, sustentada por uma idéia que de alguma maneira organiza as demais. Seus termos estão elucidados já no primeiro capítulo: De Oscar a Sérgio: Utopia no Ar. Parte do país da bossa-nova e da construção de Brasília e volta à obra de Sérgio Buarque, pai do compositor, para definir os horizontes em que Chico se move. Ele surge para o país no momento seguinte ao golpe de 64, justamente quando desmorona a fantasia de uma civilização brasileira, tal como vinha sendo gestada e era visível no final dos anos 50. Na figura de Chico, a utopia do período anterior de alguma forma se mantém e se renova. Sua obra será ao mesmo tempo uma espécie de sismógrafo do seu desmoronamento.

O segundo capítulo, De Tom a Noel: Ilusões Perdidas, trata do início da carreira de Chico à luz do revés que representou 64. O autor da marchinha A Banda, a despeito da mitologia que se criou em torno de seu nome, mantinha uma relação complexa e desconfiada com a cultura de esquerda que prevaleceu no país até 68, quando foi solapada pelo AI-5.

Nem Toda Loucura É Genial dedica-se às relações conflituosas entre Chico e o tropicalismo, tema central dos embates culturais dos anos 60, sobre o qual pouco se discutiu para além do clima de Fla x Flu. O capítulo avança no tempo para mostrar como Chico e Caetano respondem de formas distintas aos mesmos problemas, desde então até hoje. Pode-se dizer que são duas visões do Brasil.

O capítulo 4, Generais, Malandros, Anti-Heróis, ocupa-se dos anos 70, quando o enfrentamento com o regime militar fixa uma imagem de Chico que de certa forma ecoa até hoje, mas que já naquela época era insuficiente para dar conta do que ele fazia.

Bye Bye, Brasil, na seqüência, procura revelar como Chico irá traduzir, ao longo dos anos 80, o sentimento de impotência e de desajuste diante do desmanche de um projeto histórico nacional e popular, o mesmo que o golpe havia abortado e que não pode ser mais retomado quando as forças que haviam sido derrotadas reaparecem em cena. A música que dá título ao capítulo, uma obra-prima, não deixa de ser também o avesso da profecia tropicalista. A expansão do lirismo, que assume nova dicção, e o distanciamento em relação à referência política são traços que distinguem a obra do compositor a partir dessa época.

Hora do Recreio é um respiro e uma homenagem ao futebol, ou, antes, à importância fundamental do futebol na vida de Chico. A canção que ele dedicou ao tema fala por si.

O último capítulo, Cidades Impossíveis, parte dos anos 90, quando os romances vêm introduzir uma grande novidade no conjunto de sua obra e já não se pode mais falar dele apenas como compositor. O contraponto entre as canções dos últimos discos e a literatura, ambas de um rigor formal incomum, cria uma tensão muito particular entre a imagem de um país inviável e a preservação da utopia pela mesma voz que canta o seu desaparecimento.

Não deixa de ser curioso que alguém tão consagrado esteja tão decididamente na contramão da cultura dominante e tão pouco à vontade com os ares do mundo.



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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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