Coube-me o honroso privilégio de saudar o eminente professor Cassiano Nunes nesta cerimônia em que a Universidade de Brasília lhe está outorgando o título de Doutor Honoris Causa. Começando por um chavão quase obrigatório em momentos como este, mas que, no meu caso, é absolutamente sincero, eu direi que não me considero a melhor pessoa para fazer tal saudação. Acredito que um colega ou uma autoridade mais ilustre poderia saudá-lo bem melhor do que eu. Falta-me o dom da oratória, qualidade tão importante em ocasiões solenes como esta. Contudo, que o destino me trouxe até aqui, e me pôs diante de vós, me resta dizer algumas palavras que estejam minimamente à altura do insígne homenageado.

            Cerimônias como esta, de outorga de título de Doutor Honoris Causa, trazem-me à mente uma frase do comediógrafo francês Molière. Em sua farsa As preciosas ridículas, ele pôs nos lábios de uma de suas personagens a seguinte deixa: “Les gens de qualité savent tout sans avoir jamais rien appris”,[i] que, em português, poderia ser traduzida por “As pessoas de qualidade sabem tudo sem jamais ter aprendido nada”. Trata-se, é óbvio, de um absurdo, mas de grande efeito cômico, que, se tomado ao da letra, propõe ser o saber algo ingênito, inato a alguns indivíduos especiais. Ocorrem-me, também, outras palavras. Desta feita, as do compositor da música popular brasileira, Noel Rosa. Em sua famosa cançãoFeitio de Oração”, feita de parceria com Vadico, declara ele queBatuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio”, versos que sugerem a possibilidade de se adquirir o saber longe dos bancos escolares; no caso, o saber de compor sambas.

            Desse modo, e não obstante a deferência e a reverência contidas no título de Doutor Honoris Causa, ora concedido, estaríamos aqui reunidos apenas para reconhecer de direito ao professor Cassiano Nunes aquilo que ele, de fato, possui: o saber. Um saber que, se ele não o trouxe ingenitamente do berço, conquistou-o ao longo de seus 81 anos de idade na escola da vida.

Hiperbolicamente, dizia o ator e diretor de teatro Miroel Silveira ser Cassiano um desses indivíduos que dão a impressão de haver lido tudo, afirmação que nos remete de volta ao absurdo da deixa de Molière, porquanto, nem se Cassiano fosse imortal (O que ele de certo modo é, pois é membro da Academia Brasiliense de Letras, onde ocupa, desde 1981, a Cadeira Nº 30, cujo patrono é Monteiro Lobato),... repito: nem se Cassiano fosse imortal, ele conseguiria dar conta de ler todos os livros até hoje publicados. Mas se ele não leu todos os livros do mundo, certamente leu um grande número deles. Em verdade, Cassiano fez dos livros a sua razão de viver, e foi nos livros que encontrou o saber que hoje a Universidade de Brasília lhe reconhece. Em um pequeno aforismo de Grafitos nas nuvens, ele afirmou: “Leio; logo, aprendo.”[ii] E se Antônio Feliciano de Castilho achou, no século XIX, a felicidade pela agricultura, e se cada um de nós a procura no amor, na família, na vida profissional e até mesmo nos objetos materiais, Cassiano encontrou-a nos livros, motivo pelo qual deu a uma de suas coletâneas de ensaios o curioso título de A felicidade pela literatura. Essa paixão pelos livros levou-o a formar uma invejável biblioteca que, ionescamente, , ao longo dos anos, tomou conta dos principais cômodos de sua singela casa na Asa Sul. Em uma de suas conferências, Cassiano declarou:

 

Minha ligação com a Literatura, mais do que monogamia, constitui monomania. Vivo a Literatura em tempo integral: de manhã, de tarde, de noite. Na mocidade, naturalmente, tinha sonhos eróticos. Hoje, velho, vivo uma obsessão: todos os meus sonhos tratam exclusivamente de Literatura! Sonho que estou escrevendo, que estou publicando, que estou fazendo conferências... É claro que amo o Teatro, a Pintura, o Cinema e a própria vida, mas, no fim, tudo isto resulta ainda em matéria para a Literatura. Talvez eu não aceitasse nada disto, se não o convertesse em Literatura.[iii]

 

 

Não se deve pensar, entretanto, que Cassiano seja ou tenha sido avesso aos estudos acadêmicos. Pelo contrário: ele formou-se em Contabilidade no Ginásio Santista, dos Irmãos Maristas, e é Bacharel e Licenciado em Letras Anglo-Germânicas pela Universidade de São Paulo, estes últimos títulos obtidos em 1954 e 1955, respectivamente. E mais: não se dando por satisfeito, ele prosseguiu seu aprendizado, agora de pós-graduação (em um época em que tais estudos eram quase inexistentes entre nós), primeiro, nos Estados Unidos, na Miami University, onde se especializou em Literatura Norte-Americana, e, a seguir, na Alemanha, na Universidade de Heidelberg, onde se aperfeiçoou em Literatura Alemã.

Nos anos oitenta, Cassiano esteve para defender, uma tese de doutorado sobre a obra de Monteiro Lobato. Sou testemunha ocular de que, para isso, ele muito pesquisou e trabalhou. Apesar de ser uma pessoa de parcas ambições materiais, ele aspirava a escrever uma obra madura sobre a correspondência do criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Acredito que, ao começar essa empreitada, Cassiano não se tenha dado conta das dificuldades de trabalhar com material epistolar em um país onde as cartas estão perdidas no fundo das gavetas e dos baús, e, quando encontradas, nem sempre estão disponíveis aos estudiosos pelos mais diversos, e às vezes mesquinhos, motivos. Cassiano não conseguiu concluir sua tese antes que o prazo estipulado para a defesa expirasse. Mas essa tese existe de fato. Considerando-se tudo que publicou, nos últimos anos, acerca do escritor de Taubaté, bastar-lhe-ia reunir em um único volume todo esse material para que uma tese de doutorado se configurasse. Talvez tenha faltado a Cassiano um pouco mais de espírito prático. Talvez... Mas Cassiano é assim: meio desligado da vida prática. Ele nunca cobiçou mercenariamente o certificado, o diploma. Os que conquistou foram apenas o coroamento natural de um trabalho desinteressado. O que sempre buscou foi o conhecimento, o saber. Essa atitude fica evidente em um poema intitulado “Outro aniversário”, onde se lêem estes versos reveladores: “Após tantos estudos, aprendo a velhice. Curso difícil. Exercícios constantes de despojamento. [...] Curso sibilino, contudo aguardo prova e a-provação. (Dispensável o diploma.).”[iv]       

Pode parecer incongruente e dísparatado haver começado esta saudação citando e cotejando Molière e Noel Rosa, isto é, o que há de mais clássico no teatro francês e o que há de mais popular na música brasileira: o samba. Tal incongruência e disparate, em se tratando de Cassiano, não existem. Como Molière, ele é autor de quatro peças teatrais (Nada mudou, Sempre haverá anjos, As luvas de Ema e Plipaimundo no circo) e certamente teria feito uma vitoriosa carreira de dramaturgo se houvesse ficado em São Paulo, ao invés de transferir-se para Brasília; do mesmo modo, seguindo os passos de Noel, é autor de pelo menos dois sambas:  “Vem se queres” e “A ingrata Madalena”.

De fato, Cassiano Nunes sempre circulou nestes dois planos, opostos mas complementares: o erudito e o popular. Quem observar a sua produção literária, tanto a de ensaísta quanto a de poeta, constatará que os seus temas oscilam entre esses dois pólos. Cassiano interessa-se por refinados assuntos estéticos e literários com a mesma atenção que dedica aos pequenos ou grandes dramas da vida cotidiana. Os títulos dos seusopúsculos¾ a maneira que encontrou para divulgar rapidamente as suas idéias ¾, impressionam pela variedade e ecletismo. Com a mesma facilidade com que discorre sobre Machado de Assis, Cruz e Sousa, Lêdo Ivo, João Antônio, Cora Coralina, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Carlos Lacerda e muitos outros, Cassiano transcreve e comenta as Cartas do povo brasileiro ao Presidente, assim como, nos seus poemas, fala da bicicleta que não pode ter; de um hotel encardido de uma estrela, onde se hospedava quando ia a São Paulo; do jardim da humilde casa de Guimarães Rosa, em Cordisburgo; ou de um velho cão que encontrou, um dia, perto do Palácio do Planalto, quando trabalhava. Em seu poemaHistória”, ele revela:

 

Nunca amei a Beleza

por humildade.

Não a mereço, pensava.

Procurei, pois, o feio

em bairros encardidos.

Por sorte,

a poesia surgiu

e transfigurou tudo.

Silhuetas baças

toucaram-se de madrepérola.[v]

 

Com a mesma boa vontade, humildade e eloqüência com que falou para estudantes e doutores em universidades norte-americanas, alemãs, equatorianas, cubanas, cabo-verdianas, Cassiano Nunes fez palestras para alunos e professores das modestas escolas das cidades satélites do Distrito Federal. Não é pois retórica a afirmação que, de vez em quando, escapa de seus lábios: “Como Oswald de Andrade, já ‘falei na Sorbonne e no Sindicato dos Padeiros.’”[vi]

Cassiano chegou a Brasília, em 1966, para integrar o quadro docente da UnB, da qual se aposentou em 1991, ao completar 70 anos. Ele dedicou, por conseguinte, 25 anos de sua vida a esta Casa. Inquirido a respeito de sua carreira de magistério, Cassiano admite não ter um sido “um professor universitário representativo”.[vii] Ele se considera mais um intelectual, um escritor, que atuava ocasionalmente como professor. Ao iniciar o Curso de Letras, aos trinta anos de idade, Cassiano já tinha uma carreira de escritor de 14 anos, porquanto começou a publicar em 1937. Ele afirma haver se tornado professor para poder dedicar-se inteiramente à Literatura, transformando, assim, a sua já aqui aludida “monomania” pela Literatura em profissão. Esse autojulgamento de Cassiano sobre a sua vocação para o magistério é demasiado severo. Pelo contrário, eu diria ser ele um professor em tempo integral de 24 horas, um mestre no sentido que os orientais dão a esse termo, um mestre sempre disposto a compartilhar generosamente os seus conhecimentos. Quem tem o privilégio de com ele conversar, por mais informal de seja esse diálogo, sempre aprende alguma coisa. Ouvi-lo discorrer acerca das pessoas que conheceu e dos acontecimentos de que participou é sempre uma lição de vida, uma lição que prescinde da escola e pode ser ministrada e aprendida em qualquer lugar em que ele esteja, desde os corredores do Minhocão ao Bar Beiture, que ele costumava freqüentar.

A outorga do título de Doutor Honoris Causa pressupõe que o seu receptor tenha lutado em prol de alguma causa digna de admiração e encômios, tenha, de algum modo, contribuído para o bem-estar, o progresso e o aperfeiçoamento do ser humano. Qual teria sido, então, a causa defendida por Cassiano? A causa por ele defendida foi a sua razão de viver: a causa da Literatura. Ao longo de sua existência, ele não só estudou Literatura e produziu a sua própria obra literária, mas, enquanto professor, ensaísta, dramaturgo, jornalista, crítico de arte e poeta, divulgou a obra de vários escritores. Alguns nomes hoje consagrados foram por ele lançados no tempo em que selecionava textos para serem publicados pela Editora Saraiva. Desse modo, usando a arma da palavra, Cassiano muito contribuiu para a divulgação da literatura e da cultura nacionais no Brasil e no Exterior.

Cassiano é um idealista, um lutador e um grande defensor da cidade que o acolheu. Feito “cidadão honorário” de Brasília pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, em 1997, ele tem retribuindo essa acolhida, justificando a existência de Brasília e enfatizando o seu importante papel como ponte para o desenvolvimento da Região Centro-Oeste, em textos como Justificativa e defesa da cidade de Brasília e Impulso de Brasília à marcha para o Oeste. Digno de nota é também o fato de que, nos últimos anos, muitos de seus textos adquiriram um forte cunho social. Em diversos ensaios e poemas, Cassiano tem defendido, com veemência, o homem brasileiro da opressão e das injustiças contra ele praticadas. No eloqüente poema “Invasões”, ele escreveu estes versos angustiantes:

 

O país é tão vasto

mas o seu povo

não tem onde morar.

Sua gente se aterra

porque não tem terra!

Não há terra

onde essa planta

¾ o homem ¾

possa vicejar.

O Brasil

é um quase-continente

que cospe ou vomita

a sua gente.

[...]

Acaso chegou, pérfido,

o invasor estrangeiro?

Não. É um brasileiro

esmagando outro brasileiro.

Essa gente caída,

sofrida,

destemida,

não dá para ver?

Presta atenção

com emoção:

É o povo brasileiro

recusando-se a morrer...[viii]

           

O tempo que me foi concedido para esta saudação ao professor Cassiano Nunes já se esgota. Muita coisa ainda precisaria ser assinalada: por exemplo, que ele tem poemas traduzidos para outros idiomas, em particular o inglês; que algumas de suas poesias foram musicadas por compositores da envergadura de Emilio Terraza e Cláudio Santoro; que recebeu prêmios literários importantes, em particular os de Ensaio e Poesia da Academia Brasileira de Letras pelos livros Atualidade de Monteiro Lobato e Jornada, em 1883 e 1984, respectivamente. Tudo isso, e muito mais, ficará, entretanto, para outra oportunidade.

Nos últimos tempos, Cassiano Nunes tem andado um pouco abatido, resultado de problemas de saúde que bravamente vem enfrentando. Faço sinceros votos - e acredito estar falando por todos os seus amigos aqui presentes - de que ele se recupere logo e recobre a alegria de viver e a voz tonitruante que lhe são tão peculiares. Por ora, se olharmos no fundo dos seus olhos, ainda veremos o menino que, ávido de saber, nem o tempo, nem a vida, nem o próprio poeta conseguiram aniquilar. E assim, devolvendo-lhe, com as devidas alterações, os versos de “Assassinato do menino”, eu direi a Cassiano: “Para que o menino sobreviva e, resoluto possa dar nobre forma ao seu destino: é preciso preservar o homem”.[ix] E rebatendo as palavras da epígrafe desta saudação, eu também direi a Cassiano não ser verdade a afirmação de que tudo o que morrer com ele “em mais bela forma o mundo verá” e que tampouco lhe é necessário pedir que o perdoem “pela parcela mínima ¾ porém única! ¾ que não se repetirá.” E, finalmente, aproveitando um dito popular, eu ainda lhe direi: “Se você não existisse, querido amigo Cassiano, nós teríamos de inventar outro”.

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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