Vamos tirar férias-de-lagarto?

Ignácio de Loyola Brandão (*)

Cada um de minha geração, e acredito que também na seguinte, criou um Sítio do Pica-Pau Amarelo particular nos nossos quintais ou arredores da cidade - quando a periferia ficava na esquina - ou em chácaras de amigos e parentes. Quintais já foram o mundo da fantasia e do encantamento. Neles havia árvores, grama, horta, galinheiro, tanque de água para os patos (evidentemente, a fiscalização sanitária fez sua intervenção, era preciso), um monte de pedras (porque nossos pais amontoavam tanta pedra, caco de telha, de tijolo, pedregulho, o que faziam com aquilo?), telheiros de zinco. O zinco era pau para toda obra. Cobria o galinheiro, o puxadinho de ferramentas, o quarador de roupas, a varanda dos pobres. O mundo dos quintais desapareceu, cedeu lugar a cimentados, lajotados, pisos de cacos de cerâmica. Abriu-se o sagrado espaço para o carro.

Hoje, crianças brincam no interior dos apartamentos com acessórios eletrônicos, internets, googles, videogames, celulares, iPods e derivados que as colocam em comunicação umas com as outras e com o mundo. Ou não? Como é hoje a relação criança-natureza? Ainda existe o pé no chão, o caco de vidro, o prego no calcanhar, o espinho na mão, o barro na roupa? Ou estou falando da Idade Média? Gostaria de ter mais dados para avaliar como a criança de hoje mergulha no mundo de Monteiro Lobato que começou a ser reeditado inteiro pela Globo, depois de décadas de dúvidas, negociações, impasses. Serão 56 volumes, 31 de infanto-juvenis e 25 da chamada obra adulta. Se a minha geração curtiu Lobato com os desenhos de Belmonte, as novas se apoiarão nas ilustrações modernas - ainda que com o mesmo sabor das clássicas - de Paulo Borges que, imediatamente, transmite a atmosfera. Reinações de Narizinho, Viagem ao Céu, Dom Quixote para Crianças já estão nas livrarias. Como essas gerações, para quem as galáxias, planetas, satélites (naturais e artificiais) são coisas do cotidiano, vão encarar a viagem ao céu inventada por Lobato? Ou imaginação é intemporal, fantasia é fantasia, nos captura? Se hoje são foguetes que conduzem astronautas, naquele tempo Lobato criou o pó de pirlimpimpim que provocava tudo. E olhem que ele inventou o pó décadas antes dos alucinógenos entrarem em pauta, portanto foi precursor, visionário. Narizinho faz suas reinações no fundo do mar, acompanhada do Príncipe Escamado, algo à la Júlio Verne ou Jacques Cousteau. E olhem que Lobato formata seus livros em capítulos que podem ser lidos à parte, cada um como um conto. Era a modernidade nos anos 30. Reinações é de 1931 e Viagem ao Céu de 1932.

Mesmo hoje, que criança não adoraria patinar nos anéis de Saturno, flutuar sem a lei da gravidade, voar na cauda de um cometa? Muito antes de o russo Gagarin chegar lá em cima e dizer uma das mais famosas frases da história, a Terra é azul, Pedrinho, Narizinho, Emília viram a Terra olhando lá da Lua, conversando com São Jorge, um santo triste e solitário condenado a viver num vazio ao lado de seu dragão. Explicaram o mundo, contando de países que o santinho nem tinha idéia que existiam, deixando-o assombrado. Mas as crianças (bem, Emília era ou não uma criança? Há hoje tanta criança pior do que a Emília que era de pano) esclareceram: Acontece que países são como brotos de árvore. Uns secam, apodrecem e caem, surgem brotos novos. Geografia explicada melhor do que muito geógrafo.

Lobato só erra numa coisa, porque São Jorge prevê que o Sol acabará esfriando, virando gelo e, infelizmente, vem acontecendo o contrário, tudo vai se aquecendo cada vez mais. No entanto, no inicio do livro há uma coisa maravilhosa, as férias-de-lagarto, invenção que viria a calhar nestes tempos de excesso de trabalho, muita velocidade, muitas reuniões, compromissos, almoços de negócios, expedientes prolongados, ausência de fins de semana e férias, e etc. e tal, que acabam provocando o maior estresse. No sítio do Pica-Pau Amarelo, no mês de abril, tudo parava. Ninguém fazia nada. Ficavam todos cochilando ao sol, como lagartos. Fazer nada era modo de dizer, ficavam vivendo. Dizia Dona Benta, a avó mais incrível de todos os tempos, que a maior parte da vida nós a passamos entretidos em tanta coisa, a fazer isto e aquilo, a pular daqui para ali, que não temos tempos de gozar o prazer de viver. Vamos vivendo sem prestar atenção na vida e, portanto, sem gozar o prazer de viver imóvel à moda dos lagartos. Sem sequer, olhem lá, pensar!

Sim, Dona Benta! Essas pessoas que carregam o tempo inteiro laptops debaixo dos braços, que têm quatro celulares, palmtops, que estão em constante comunicação com a empresa, o escritório, o cliente, o patrão, o mundo, o universo, o inferno, sim, essas pessoas precisam de férias-de-lagarto. Mas não ficariam inquietas, ansiosas, nervosas, neuróticas?.

Crônica publicada em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 05102007, p. D14

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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