E agora, Portugal?

É preciso esclarecer as informações desencontradas antes de dar o próximo passo na unificação da grafia do idioma

 

José Luiz Fiorin

Revista Língua Portuguesa, ano 3, nº28

 

 

A língua portuguesa tem dois sistemas ortográficos: um vigora no Brasil e outro, em Portugal e nos demais países lusófonos (Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau e Timor Leste). Essas duas ortografias são oficializadas por dispositivos legais. No Brasil, a grafia é regida pela lei 2.623, de 21 de outubro de 1955, que restabeleceu a vigência do Formulário Ortográfico de 12 de agosto de 1943, e pela lei 5.765, de 18 de dezembro de 1971. Essa situação de não unidade se deve ao fato de que, logo depois da independência do Brasil, os escritores diziam que não bastava que houvesse uma independência política de Portugal, era preciso também estabelecer uma independência cultural. Por isso, o Brasil nunca reconheceu a autoridade lingüística de Portugal. As divergências ortográficas foram ocorrendo e, desde 1924, procura-se uma ortografia comum. Em 1945, chega-se a um acordo de unificação, que se tornou lei em Portugal no mesmo ano. No entanto, como o Congresso Nacional Brasileiro não o ratificou, a ortografia brasileira continua a ser regida pelas disposições de 1943.

 

As diferenças entre as duas ortografias não são substanciais, não impedindo a compreensão dos textos grafados numa ou noutra.

 

Entretanto, a duplicidade ortográfica dificulta a difusão internacional do português, na medida em que os documentos dos organismos internacionais que adotam o português como língua oficial precisam ser duplicados, pois devem ser publicados numa e noutra ortografia; em que a certificação de proficiência de língua portuguesa não pode ser unificada; em que os materiais didáticos e os instrumentos lingüísticos, como dicionários e gramáticas, produzidos numa ortografia não servem para os países que adotam a outra e assim sucessivamente. Para acabar com essa situação esdrúxula, os países lusófonos assinaram, em 1990, em Lisboa, um acordo ortográfico. Estipulou-se que ele entraria em vigor em 1º de janeiro de 1994, depois de sua ratificação pelos diferentes estados nacionais. Como a ratificação não se deu, conforme se previa, ele não pôde entrar em vigência e se acordou, em 2004, que ele passaria a vigorar depois de ser ratificado por três dos oito países. Até o momento aprovaram o acordo o Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Assim, em princípio, ele está vigente. No entanto, se os outros países não o adotarem, frustra-se a idéia de unificação. Por isso, estamos em compasso de espera.

 

Equívocos

 

Nos últimos tempos, diferentes manifestações têm surgido sobre o assunto e mesmo pessoas consideradas especialistas na matéria têm incidido em quatro equívocos. É preciso afastá-los para evitar que toldem nossa apreciação desse objeto.

 

O primeiro é que se está fazendo uma unificação da língua portuguesa. Isso não é verdade. O que se deseja fazer é uma unificação da ortografia, ou seja, da convenção por meio da qual se representam graficamente as formas faladas da língua, se escrevem as formas da língua. O que se pretende unificar é a escrita e não a língua, que varia de região para outra, de um grupo social para outro, de uma situação de comunicação para outra, de uma faixa etária para outra. A variação é um fenômeno inerente à língua, porque a sociedade em que é falada é heterogênea. É impossível uniformizar a língua. Repetimos, o que se pode e se quer tornar una é a ortografia.

 

O segundo equívoco é que a reforma é tímida, dever-se-ia fazer uma mudança radical para simplificar a ortografia e aproximá-la da maneira como falamos. Na verdade, aqui há dois erros. Primeiramente, não se está fazendo propriamente uma reforma ortográfica e sim um acordo de unificação ortográfica e, portanto, atinge basicamente os pontos de divergência das duas ortografias e não faz reforma profunda na maneira de grafar as palavras. Depois, enganam-se os que pensam que se pode escrever como se fala, pois a pronúncia varia, por exemplo, de região para região em cada país e, por isso, não se pode grafar tal como se fala. Além disso, cabe perguntar por que países em que se falam línguas, como o francês ou o inglês, cuja ortografia reflete um estado lingüístico muito mais antigo ou a origem da palavra, não fazem uma reforma ortográfica drástica. Porque não é mais possível, uma vez que mudar completamente a ortografia significa condenar à obsolescência todo o material impresso. Em duas gerações ninguém mais será capaz, sem preparo específico, de ler tudo o que foi impresso até o momento. Ora, isso é impossível. Podia-se fazer reforma ortográfica radical até o início do século passado. Depois, com o crescimento das bibliotecas, dos acervos etc. não se pode mais pensar em alterar totalmente a ortografia.

 

Meia-sola

 

O terceiro erro sobre o acordo é que ele, de fato, não unifica a ortografia. Como disse um conhecido professor de português, é uma reforma meia-sola. Os que afirmam isso se fundamentam no fato de que o tratado permite dupla ortografia nos casos em que no Brasil se acentua com acento circunflexo e em Portugal, com acento agudo, refletindo a diferença de timbre fechado e aberto (econômico económico; fêmur fémur; bebê bebé; gênio génio) e nos casos em que uma consoante seguida de outra não é pronunciada no Brasil, mas é falada em Portugal (por exemplo, facto fato; secção seção; sector setor; amnistia anistia; súbdito súdito; assumpção assunção). Afirmar que não houve a unificação é um erro porque as duas grafias passam a ser corretas no território da lusofonia. Hoje, é errado escrever ceptro e género no Brasil ou cetro e gênero nos outros países lusófonos. A partir da entrada em vigor do acordo, as duas grafias serão corretas em todos os países de língua portuguesa.

 

Isso quer dizer que, com muita sabedoria, unificou-se, respeitando-se a diversidade de pronúncia refletida em formas históricas de grafar.

 

Finalmente, muitos dizem que há coisas mais importantes a fazer do que tornar uniformes as ortografias. Poderia até ser verdade se pensarmos apenas do ponto de vista das carências educacionais nos países lusófonos. No entanto, para efeitos de difusão internacional e de implantação de uma política lingüística comum, a unificação é importante. Para os brasileiros, no entanto, está em jogo outra coisa. Em Portugal, muitos falam em recusar o acordo, em nome da manutenção da pureza da língua original, porque ele representa a brasilianização da ortografia, a colonização dos ex-colonizados. Os argumentos desses portugueses não têm fundamento na realidade. São fantasias.

 

Impasse

 

No entanto, apesar do que dizem as autoridades portuguesas, eles tiveram forte acolhida, pois Portugal, país depositário do acordo, nem sequer fez o comunicado aos países signatários, conforme determina o artigo 77 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23051969, de que ele está em vigor, por ter sido alcançado o número mínimo de ratificações. Esse comunicado é uma obrigação do país depositário, mas nem isso Portugal fez para não dizer oficialmente que ele está em vigência. A partir daí, o acordo passa a ser muito importante para o Brasil, pois o que está em questão é o fato de que Portugal pretende manter-se na posição de padrão de língua para os países lusófonos de África e de Ásia, de que Portugal nega ao Brasil um papel pleno no intercâmbio cultural e científico entre os países lusófonos e na difusão do português no mundo, na medida em que não reconhece, por exemplo, a certificação de proficiência brasileira ou a legitimidade de seus materiais didáticos e instrumentos lingüísticos. Portugal pretende ter um monopólio da política lingüística de propagação do português; Portugal deseja manter o mito de que é o guardião da pureza do idioma. Por essas razões, do ponto de vista simbólico, o acordo de unificação é relevante para o Brasil.

 

Portugal adia a unificação

 

O governo português adiou a aprovação do Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico que envolve a unificação da grafia nos países de língua portuguesa. A informação, da agência de notícias portuguesa Lusa, foi dada no fim de dezembro. A aprovação do documento, prevista para o último conselho de ministros portugueses que ocorreria em 27 de dezembro, ficou para data não definida.

 

Isso, se o acordo for mesmo aprovado pelos portugueses. Em 2 de novembro, o ministro português das Relações Exteriores, Luís Amado, anunciou que Portugal aprovaria o protocolo modificativo até o fim de 2007. Vinte e cinco dias depois, a ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima anunciou na Assembléia da República (o Congresso de lá) que Portugal vai pedir um prazo de dez anos para a entrada em vigor do novo acordo ortográfico.

 

A moratória evitaria as muitas adaptações e alterações, em livros escolares por exemplo. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi alcançado em 1991 e deveria ter entrado em vigor em 1994, mas apenas três dos Estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe - aprovaram os dois protocolos modificativos. O segundo desses protocolos, em 2004, previu que, se apenas três países ratificarem o texto, o documento entraria juridicamente em vigor. Na prática, Portugal ainda não o fez e é esse documento que só vai a conselho de ministros em 2008, tendo ainda de passar posteriormente pela Assembléia da República.

 

O acordo ortográfico deu margem no Brasil a mal-entendidos e informações desencontradas, muitas das quais sem amparo nos fatos. Para esclarecer as principais questões, Língua traz artigo do lingüista José Luiz Fiorin sobre o assunto.

 

 

José Luiz Fiorin é professor do Departamento de Lingüística da USP e organizador dos livros Introdução à Lingüística I: objetos teóricos e Introdução à Lingüística II: princípios de análise, ambos da Editora Contexto

 

 

                                                                                       

                                                                           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                        

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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