Império
O dono do mundo

Napoleão Bonaparte está no auge e nada parece segurar
sua sede de poder – exceto uma certa Marinha inglesa

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Quadro: Chegaram os dias de glória

O homem mais poderoso do mundo ainda fumega de raiva quando se lembra de um dos menos poderosos, no momento. O único que me enganou, costuma dizer Napoleão Bonaparte, autoproclamado imperador dos franceses, que tem a Europa quase inteira a seus pequenos e vitoriosos pés, mas não conseguiu impedir a fuga do príncipe João, o regente português recém-chegado ao Rio de Janeiro. Para Napoleão, na prática, tanto faz: seu Exército tomou Portugal quase num piscar de olhos – menos de quinze dias – e um de seus fiéis generais, Jean-Andoche Junot, governa o país como preposto do poder imperial francês. O ardil dos portugueses, no entanto, pode sinalizar um ponto de inflexão na maré napoleônica. As coisas não vão bem na Espanha, que se aliou aos franceses contra Portugal mas agora dá sinais de resistência, tanto na realeza quanto entre a população comum. Os ingleses continuam a ser um osso duríssimo, se não impossível, de roer: por mais vitórias que Napoleão tenha em terra, eles são os donos dos mares, como se viu com a proteção dada à corte portuguesa em fuga. É arriscado fazer previsões sobre os resultados da guerra que eclode cada hora num lugar da Europa, com conseqüências para o mundo inteiro, mas os precedentes permitem sustentar que os ingleses jamais vão ceder – nem, provavelmente, perder para Napoleão.

Parece exagero especular sobre futuros tropeços justamente no momento em que esse homem, excepcional por qualquer padrão que se julgue, atinge o ápice do poder. Para chegarmos até esse campo pantanoso da projeção de acontecimentos futuros com base no presente, vale relembrar os principais capítulos da carreira meteórica do hoje imperador, construída sobre o caos sanguinolento e autodestrutivo em que havia desembocado a grande revolução desencadeada na França em 1789. Nascido na Ilha da Córsega e formado militar nos estertores da monarquia, Napoleão Bonaparte foi promovido a general aos 24 anos, conquistou a Itália aos 27 e o Egito aos 29. Aos 30, embicou para o poder absoluto como primeiro-cônsul. Coroou-se imperador da França e rei da Itália aos 35. Vai completar 39 anos em agosto próximo. Seus exércitos são hoje invencíveis. Ele tem sob seus desígnios um vasto território que vai do Mediterrâneo ao Báltico; do cálido litoral atlântico de Portugal às águas geladas do Rio Nemen, na fronteira da Polônia – agora chamada de Grão-Ducado de Varsóvia – com a Rússia (veja mapa). Transformou em reis três de seus irmãos: José em Nápoles, Luís na Holanda e Jerônimo na Vestfália. Dois outros reis, da Baviera e da Saxônia, de sangue azul original, devem seu trono a ele (estes integram a coligação de estados alemães inventada por Napoleão com o nome de Confederação do Reno).

A grande reorganização do poder na Europa aconteceu em questão de anos e se acelerou depois do tratado de Tilsit, firmado no ano passado entre Napoleão e Alexandre I, o czar da Rússia. O tratado foi assinado a bordo de uma balsa luxuosíssima, enfeitada com águias douradas que simbolizam os dois impérios e mandada construir por Napoleão especialmente para encantar o jovem e influenciável Alexandre (Eu odeio os ingleses tanto quanto o senhor, disse o czar no primeiro encontro. Nesse caso, a paz já está feita, respondeu Napoleão). Alexandre levou a Finlândia em rédeas soltas em relação ao Império Otomano. O imperador francês, o resto. O tratado é o mais próximo que Napoleão já chegou de concretizar sua obsessão, patentemente impossível, de unir a Europa toda num só estado, como um Carlos Magno moderno, movido pela força da espada e pelo poder das idéias.

São essas, justamente, que espelham as enormes contradições que, tal como as linhas de um destino praticamente sem precedentes na história mundial, pesam sobre esse homem. Napoleão é visto, simultaneamente, como herói e vilão dos ideais de liberdade e democracia que há algumas décadas agitam o mundo. Recebido como libertador por povos submetidos a monarcas despóticos, ele recorre aos mesmos instrumentos de repressão dos velhos regimes. Seu império é construído sobre uma montanha de corpos – incontáveis, mas calculados em algumas centenas de milhares. O melhor retrato das reviravoltas políticas que o transformaram de republicano militante em imperador com cetro e coroa (pela graça de Deus e aprovado em plebiscito, já que estamos falando em contradições) foi feito talvez por Ludwig van Beethoven. O talentoso compositor a serviço do imperador da Áustria dedicou sua terceira e revolucionária – musicalmente – sinfonia, a Heróica, a Napoleão. Decepcionado quando ele se coroou imperador, há quatro anos, Beethoven rebatizou-a de Sinfonia heróica, composta para celebrar a memória de um grande homem, como se seu inspirador já estivesse morto. Para justificar ideologicamente a proclamação do império, Napoleão praticou um dos maiores atos de contorcionismo conceitual de todos os tempos: alegou que só assim seria impossível restaurar a monarquia com a linhagem deposta dos Bourbon. Os franceses, exauridos pela instabilidade pós-revolucionária e embriagados pela retórica de seu comandante, aprovaram.

Napoleão tem estatura média, mas parece menor porque vive cercado pelos grandalhões de sua guarda de honra, uma tropa de elite composta de militares com 1,80 metro de altura, pela medida francesa. Memória, inteligência e resistência física são prodigiosas. Come em vinte minutos e dorme pouquíssimo. Depois da Batalha de Austerlitz, em dezembro de 1805, escreveu a Josefina, a mulher por quem tem paixão quase obsessiva: Bati o Exército russo e o austríaco. Fatiguei-me um pouco, acampei oito dias ao ar livre, em noites bastante frescas. Deito-me esta noite no castelo do príncipe de Kaunitz, onde vou dormir duas ou três horas. Goste-se ou não dele, é forçoso admitir que é um dos maiores comandantes militares de todos os tempos – ou o maior, como reconhece seu inimigo mais constante, o britânico Arthur Wellesley. Gênio tático e estratégico, não é exatamente um inovador, embora tenha introduzido uma mortífera novidade, as chamadas baterias de artilharia, uma força móvel que surpreende os inimigos. Tudo o que faz em campo de batalha já foi feito antes – mas ele faz como ninguém. É brilhante para arengar a tropa. Soldados! Estais nus e mal alimentados, disse aos camaradas que enfrentavam a dura travessia dos Alpes na campanha da Itália. Quero conduzir-vos às planícies mais férteis do mundo. Ricas províncias, grandes cidades cair-vos-ão nas mãos. Ali encontrareis honra, glória e riqueza. Em duas semanas, tudo se cumpriu.

Nas campanhas militares iniciais, como as da Itália e do Egito, Napoleão criou um núcleo de comandados fiéis e corajosos que o acompanham em sua escalada desde então. Deles, exige tudo – inclusive sorte. Mas também retribui. Um simples granadeiro pode chegar a general, herói ou príncipe. Catorze generais, todos de origem humilde, foram promovidos a marechais da França quando Napoleão proclamou o império. Ao louvável sistema de meritocracia que usa com os generais, contrapõe-se a liberalidade com que distribui reinos aos irmãos e grão-ducados às irmãs. O nepotismo é produto tanto do desejo de fundar uma dinastia própria para perpetuar sua obra quanto da força dos laços de sangue que trouxe da bela e selvagem Córsega. A família era pobre, mas orgulhosa. Tinha – ou produziu por conhecidos métodos corsos – um título da pequena nobreza italiana, usado para matricular o menino de apenas 9 anos na escola militar de Brienne, onde o sotaque e o nome esquisito (ainda Napoleone di Buonaparte) o tornaram alvo de humilhações. Quis sair. Estou cansado de suportar a indigência e de ver sorrir insolentes colegiais, escreveu à família. Não temos dinheiro; é preciso ficar, respondeu, realista, o pai. Ele se formou em 1785, como segundo-tenente de artilharia. Caprichoso, altivo, extremamente disposto ao egoísmo, falando pouco, enérgico em suas respostas, pronto e severo em suas réplicas. Ambicioso e aspirante a tudo, dizia o boletim de avaliação. Tinha 16 anos. Ele, a França, a Europa e, por extensão, até o nosso distante canto do Novo Mundo estavam prestes a passar por mudanças telúricas.

Nunca a expressão o homem certo no lugar certo se aplicou tanto quanto no caso de Napoleão. A revolução acabou com a velha ordem e começou a devorar os próprios filhos. O jovem Napoleão conseguiu sair do furioso olho do furacão e, ao mesmo tempo, destacar-se em batalhas contra as forças das monarquias ameaçadas. Foi para Paris, onde conheceu Josefina de Beauharnais, uma viúva de 32 anos, olhos azul-escuros e um passado quase negro – era amante de um aristocrata convertido, como ela, à causa revolucionária. Napoleão apaixonou-se completamente. Josefina trocou de cama e de destino. Acordo cheio de ti. Teu retrato e a inebriante noite de ontem não permitiram repouso a meus sentidos. Uma chama me queima, um milhão de beijos, escreveu ele. Casam-se e ele parte para conquistar os territórios italianos que pertenciam à Áustria e ao papa (mas foi outro general que, um ano depois, tomou Roma e prendeu Pio VI, morto de doença no humilhante cativeiro). Paralelamente às conquistas militares, Napoleão introduziu na França reformas de um alcance difícil de descrever: educação universitária pública, novo sistema de impostos e de estradas, uma instituição que poderia ser descrita como um banco central e o Código Civil, que normatiza o funcionamento da sociedade e os direitos e deveres do cidadão, chamado – o que mais? – de Código Napoleônico. A novidade deste ano é o código criminal, que estabelece as regras dos processos na Justiça e novidades como o direito de todo acusado a um advogado. Fez uma concordata com a Igreja Católica – proibida durante a revolução – e reconheceu a religião protestante. Agora, está para sair o reconhecimento da religião judaica. Muitas das mesmas liberdades civis são estendidas aos países conquistados pela França.

Apesar do momento de glória que vive, no próprio poder conquistado depois de Tilsit, no ano passado, podem estar as sementes da destruição do imperador. Com a Europa sob seu controle, ele se sentiu livre para impor o bloqueio continental à Inglaterra e ameaçar Portugal, redundando na fuga da família real e na parte que nos cabe nessa história. O bloqueio é uma das maiores tolices que um governante pode cometer: contraria os interesses dos que dependem do comércio para viver e, portanto, uma das forças motrizes da mão invisível do mercado, como definiu Adam Smith, o pensador escocês falecido há menos de duas décadas, cujo legado ainda há de ser reconhecido. Boicotar uma potência marítima – e comercial – como a Inglaterra é comprar uma guerra sem fim. Brigar com o papa, como está fazendo com Pio VII, também não é boa idéia. O papa tem poucos canhões, mas continua a exercer autoridade moral sobre o mundo católico. O rei da Prússia e o imperador da Áustria – agora chamado de Francisco I, depois de ser obrigado a engolir a dissolução do legendário Sacro Império Romano – assinaram a paz, mas certamente não engoliram a humilhação. Brigar com um Habsburgo como Francisco, descendente de uma dinastia que chegou ao poder no ano 1020, é quase tão ruim quanto confrontar o papa. Quando países inteiros sentem sua existência nacional ameaçada, como Portugal e agora a Espanha, podem se rebelar, ainda que diante de um poderio militar infinitamente superior. Muito jovem, quando o nacionalismo na Córsega inflamava seu ressentimento contra os franceses que ocupavam a ilha, Napoleão escreveu em seu diário: Ver minha pátria neste estado, sem poder socorrê-la, é motivo suficiente para fugir de uma vida em que devo louvar aqueles a quem tenho ódio. Seu maior erro é não compreender que se transformou em um daqueles a quem muita gente tem ódio.

 

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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