Ontem era Canudos, hoje é a favela

por Livia Perozim
O O conhecimento pode ser uma aventura fascinante e prazerosa 

O escritor paraibano fala de livros lidos e escritos, de professores marcantes e dos conflitos entre o Brasil real e o oficial

Às 9h30 da manhã, o calor já maltrata em Afogados da Ingazeira, sertão pernambucano. O lugar mais fresco e silencioso para conversar com o escritor Ariano Suassuna é na varanda do quarto onde ele está hospedado com sua mulher Zélia, primeira namorada, mãe de seus seis filhos e companheira fiel de suas viagens pelo Brasil. Está ali como secretário de Cultura de Pernambuco e vai apresentar, no início da noite, sua célebre aula-espetáculo, que reúne dança e música armorial, uma confluência de arte erudita e popular. Ele e a sua trupe de bailarinos, cantores e músicos moram no Recife e estão percorrendo todo o estado. De Afogados, seguirão para outras duas cidades sertanejas, Salgueiro e Belém do São Francisco.
Em dias de apresentação o escritor não concede entrevistas. É para preservar a voz. Mas como a reportagem viajou de São Paulo até Afogados, distante 400 quilômetros da capital pernambucana, a exceção foi aberta. Na viagem pelo sertão “quente, sofrido e belo” de Ariano, deu para ver que ele está em casa entre os sertanejos. Paraibano, criado em Taperoá, na região dos Cariris, Ariano é reconhecido por funcionários e clientes dos postos de gasolina onde a equipe parou. São jovens, senhores e senhoras que pedem autógrafos, cumprimentam “o mestre” e tiram fotos pelo celular. Ariano é uma celebridade? “Veja bem, melhor o assédio do que o desprezo, não é, não?”
Foram duas horas de prosa regada a água de coco com o dramaturgo, autor de Auto da Compadecida, filósofo, professor de Estética, História da Cultura Brasileira e Literatura Brasileira na Universidade Federal de Pernambuco, romancista d’A Pedra do Reino, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras. Nesta entrevista, concedida a Lívia Perozim, Ariano fala sobre as obras que influenciaram o seu trabalho de escritor, comenta a situação da educação, do povo e da cultura brasileira.

Carta na Escola: Como professor, qual foi a sua maior obra?
Ariano Suassuna: Eu não sei muita coisa, mas tenho impressão que consigo transmitir aquilo que sei. Uma das minhas primeiras preocupações era mostrar aos alunos que o conhecimento pode ser uma aventura fascinante e prazerosa. Na universidade, me dava o luxo de não fazer chamada, porque acho que a presença obrigatória é contraproducente. E nunca tive problema com freqüência. Pelo contrário, vinha gente de fora assistir às minhas aulas. Acho que plantei o gosto pelo conhecimento nos meus alunos.

CE: É possível ensinar alguém a gostar de ler?
AS: O professor pode apresentar o universo literário, dar sugestões de leitura e ser exemplo de leitor. Eu fui alfabetizado pela minha mãe e por uma tia, antes de entrar na escola, aos 7 anos. Como tirei boas notas no primeiro ano, minha mãe me premiou com as obras completas de Monteiro Lobato. Ainda hoje, quando tomo posições na defesa do petróleo brasileiro, me lembro que as primeiras idéias sobre isso me vieram do livro O Poço do Visconde. Naquele tempo, todos diziam que não existia petróleo no Brasil e o Lobato teimava que existia. Ele fez uma campanha tão forte e disse tantas coisas que foi preso, o que levou Anísio Teixeira, o grande educador, a dizer: “Monteiro Lobato foi preso pelo crime de patriotismo, agravado por vários delitos de lucidez”. Minha mãe teve essa lucidez de me dar livros que me deixaram encantado. Ela agiu como professora, não é verdade?

CE: No seu caso, ter uma família letrada foi o que lhe facilitou o acesso à leitura?
AS: O acesso sim. Eu era um leitor voraz, ainda hoje o sou. Mas na minha paixão pela leitura desempenharam papéis importantes livros de aventura e romances policiais. A outra vantagem que eu tive é que o meu pai nos deixou uma biblioteca muito boa, o que ainda hoje não é comum no sertão da Paraíba. Foi da biblioteca dele que eu li pela primeira vez Os Sertões (de Euclides da Cunha), O Cortiço (de Aluízio de Azevedo), os livros de Eça de Queiroz, principalmente Os Maias, A Cidade e as Serras e A Ilustre Casa de Ramires.

CE: Desses livros, qual foi o mais determinante no seu trabalho como escritor?
AS: Os Sertões, porque considero Canudos o mais importante episódio brasileiro. É quando Brasil urbano e privilegiado se lança contra o arraial popular. Agora, na literatura universal, Dom Quixote foi fundamental na minha vida e obra, porque Cervantes conseguiu expressar, como ninguém, os problemas do ser humano, a partir de circunstâncias locais.

CE: Que obra sua o senhor indicaria para os jovens do Ensino Médio?
AS: É melhor um adolescente ler um livro que literariamente não é de primeira, mas que ele leia com grande paixão. É melhor do que ler A Divina Comédia por imposição, entende? Mas respondendo a sua pergunta, para uma pessoa pouco habituada à leitura eu indicaria O Auto da Compadecida. Já para um jovem com interesses literários, eu recomendaria A Pedra do Reino.

CE: O senhor já declarou que A Pedra do Reino é a sua obra capital. Mas diante do reconhecimento e da popularidade, não seria O Auto da Compadecida a sua criação mais importante?
AS: É sim. Eu respeito muito isso. Guarde as proporções porque não estou me comparando com Dante. Se você me perguntasse se eu queria escrever O Auto da Compadecida ou A Divina Comédia, eu lhe digo que queria escrever disparado A Divina Comédia, que jamais será popular. Há obras que têm apelo popular e O  Auto da Compadecida é uma delas. E a isso atribuo as histórias populares nas quais me baseei para escrever. Já A Pedra do Reino é uma obra mais individualista, mais complexa, mais difícil. Ninguém mais hoje lê um livro de 600 páginas. É um anacronismo, mas, na minha opinião, A Pedra do Reino é obra na qual me expressei de maneira mais completa.

CE: O senhor é um homem de muitas convicções. Aos 80 anos, reviu alguma posição?
AS: Olhe, sim. Vou lhe contar. Na Paraíba de 1930, houve uma cisão entre as forças rurais e as urbanas. Meu pai liderava as forças rurais e o presidente João Pessoa, na época o governador se chamava presidente, as forças urbanas. Então, um município do sertão da Paraíba, chamado Princesa, declarou independência e o líder da insurreição era um dos liderados de meu pai. Quando isso aconteceu, a luta se tornou armada. Eu, menino, leio todo Os Sertões e vejo as forças urbanas e capitalistas cercando Canudos e metralhando o povo do Brasil. No meu juízo de garoto, comecei a identificar Princesa com Canudos. Eu não percebia que havia uma diferença fundamental entre Canudos e Princesa, porque em Canudos eram forças do Brasil privilegiado atirando no povo. E, em Princesa, eram privilegiados do campo lutando contra privilegiados da cidade. Quando percebi que tinha sido levado pela paixão, entrei numa crise muito grande. Procurei reparar o erro e até apontar no meu próprio mestre, Euclides da Cunha, esse erro. Ele era como eu, nascido, criado, formado e deformado pelo Brasil oficial. Saiu lá do Sul, como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, e se viu diante do povo do Brasil real e ficou do lado deles. Mas a conversão era brusca demais, ele ficou deslumbrado e passou a considerar somente como Brasil real o sertão. E eu caí nesse erro dele, como meu pai caiu. Meu pai era um grande admirador de Euclides da Cunha e achou que o bem era o sertão, e a cidade era o mal.

CE: O que representa Canudos hoje?
AS: A mesma dilaceração que havia em Canudos há na cidade, entre nós e a favela. Veja bem, eu não idealizo o povo brasileiro. Em Canudos havia ladrões de cavalo, assassinos, do jeito que hoje na favela tem traficante, bandido. Mas a maioria da população, em ambos os casos, é ordeira e trabalhadora. Quando vejo a polícia cercando as favelas, vejo o povo real de Canudos. Com essa reflexão comecei a descobrir que o povo do Brasil real eram os despossuídos, na cidade ou no campo.

CE: O senhor sempre cita Machado de Assis e os dois países dentro do Brasil, o oficial e o real. Esse abismo entre o Brasil real e o oficial tem como ser transposto?
AS: Precisa ser. É muito difícil, mas é possível. Programas sociais do governo Lula que estão sendo considerados assistencialistas, como o Bolsa Família, diminuíram o número de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza absoluta. Eu lamento não ter o número exato aqui, mas acho que foi de 35% para 18% o número de pessoas que saíram da linha da miséria. Ainda assim, é um horror porque esses 18% que ainda restam são cerca de 40 milhões de pessoas. Mas está provado que é possível, com uma decisão política, acabar com a miséria.

CE: O senhor foi convidado a ser vice de Lula, em 1989. Em seu governo, o que teria feito pela educação?
AS: Eu jamais faria essa loucura, está certo? (risos) Mas eu vou lhe contar uma história terrível da minha infância. Eu tinha três colegas de turma que eram irmãos. Osório, o mais velho, Pedro, o segundo, e Davi. E esses meninos eram perseguidos. Primeiro porque eles não se misturavam, depois porque eram péssimos alunos. Graças a Deus, sempre tive um certo senso de justiça. Um dia, por um impulso qualquer, ofereci ao Osório metade do pão que eu comia. Ele aceitou e dividiu com os dois irmãos. Continuei dando um pedaço do meu lanche para eles. Anos depois, encontrei o Pedro e ele me disse que aquele era o único café da manhã que eles tomavam. Eles moravam na zona rural, vinham a pé para a escola sem comer nada. Eu não tenho competência nenhuma para ser nem presidente, nem ministro, mas tenho a convicção absoluta de que o problema fundamental, antes do educacional, é o da fome.

CE: Como é ser escritor num país de baixo nível de escolaridade?
AS: É duro, é duro. Agora, veja bem. O que eu posso fazer é muito pouco. Um escritor não tem poder político nem econômico. Tenho convicção de que é um problema difícil e que não atinge só o Brasil. A leitura não é comum em país nenhum. Não acredito que o italiano médio leia A Divina Comédia. O público leitor italiano, sim. Agora, no Brasil de mais 180 milhões de pessoas, as nossas edições são de 2 mil, 3 mil exemplares.

CE: O que uma obra como A Pedra do Reino perde quando é adaptada para o teatro e para o cinema?
AS: Perde alguma coisa, é evidente, mas ganha muitas outras. Não existe arte superior à outra. Eu fui para o romance porque o meu universo interior é muito tumultuado. Tinha muitas coisas que eu precisava dizer e que não cabiam numa peça de teatro. No romance, posso voltar no tempo, dizer o que o personagem está pensando, o que está escondendo. No teatro, tudo é dito pela fala. Então, nisso o romance é superior ao teatro. Por outro lado, a fruição da obra romanesca é sempre um ato solitário. Já o teatro é coletivo. O que eu vi na adaptação que o Antunes (Filho, diretor de teatro) fez na adaptação d’ A Pedra do Reino para o teatro é uma identificação enorme do meu romance com o meu próprio teatro. Por exemplo, Quaderna (protagonista d’A Pedra do Reino) é um personagem muito mais complexo do que o João Grilo (protagonista de O Auto da Compadecida) e o Antunes o aproximou mais de João Grilo. Se ele não fizesse isso, ficaria um desastre, um personagem de romance falando no palco interminavelmente. Então, teve essa vantagem. Quanto à adaptação de Luiz Fernando de Carvalho, sou suspeito para falar, porque sou autor do romance, mas eu achei uma  obra de arte. Ele optou por uma linguagem apocalíptica e, a meu ver, fez muito bem. Agora o pessoal diz: “Perdeu ponto na audiência”. Isso é outro problema, estou falando de qualidade artística. Eu jamais quereria estar na pele dos que ganharam para mim e para ele na audiência.

CE: O que a sua obra tem de política?
AS: O escritor tem o direito de colocar as suas idéias políticas na obra, não de colocar a obra a serviço das idéias políticas. O Calderón de la Barca (dramaturgo e poeta espanhol) tem três obras-primas da literatura universal: O Mágico Prodigioso, A Vida É Sonho e O Grande Espetáculo do Mundo. Pois bem, ele era religioso, católico como eu, e escreveu uma peça chamada Os Mistérios da Missa, que eu detesto. Ele traiu o teatro para explicar os sacramentos, os mistérios da missa. Gosto de autores de teatro como Shakespeare. As idéias políticas dele estão presentes, mas não é uma peça política. O Bertolt Brecht eu não gosto, porque ele colocava o teatro para servir de cavalo de batalha. Pois bem, qualquer um que ler O Auto da Compadecida vai saber que eu estou do lado do João Grilo e do Chicó, os dois personagens que representam o povo do Brasil real.

CE: Culturalmente, o Brasil passa por um momento de crise?
AS: De certa maneira. Mas já foi pior. Quando eu era menino, o desprezo do povo brasileiro por si próprio era uma coisa terrível. Era uma herança das teorias fascistas e racistas do século XIX, que diziam que o mestiço, o negro, eram inferiores. E hoje noto um interesse maior pela literatura brasileira e pelo povo.

CE: Foi dessa necessidade de valorizar a cultura brasileira que surgiu a aula-espetáculo?
AS: Eu tinha 19 anos quando dei a primeira aula-espetáculo no Teatro Santa Isabel, apresentando três cantadores e um poeta popular. Foi um escândalo na época. O diretor do teatro não se conformava. Ele disse: “Você quer colocar cantador de viola no palco onde Tobias Barreto e Castro Alves recitavam poemas?” Ao que eu respondi: “Doutor, gostaria de ouvir a opinião de Tobias Barreto e Castro Alves, que eu tenho certeza que eles iam gostar”. Eu estava certo. Repare, essa cantoria que organizei aos 19 anos resultou no primeiro congresso de cantadores do Recife. E o sucesso foi tão grande que alguns viajaram para o Rio e cantaram na Academia Brasileira de Letras. Comecei a notar que falando das coisas que amava, eu tinha certa empatia com o público. Quando me tornei professor, comecei a usar isso nas aulas.

CE: Quem foi o seu professor mais marcante?
AS: Eu começaria pela minha mãe e por minha tia. Mas tive também outra sorte, meus dois tios, meus primeiros professores de literatura. Para falar em termos políticos e esquemáticos: o Joaquim Duarte Dantas era mais inclinado para a direita, e o Manuel Dantas Vilar para a esquerda. Eu fiquei com a influência literária dos dois. E com a posição política de meu tio Manuel, que era ateu, coisa que eu não sou. Posteriormente, tive um grande mestre chamado Hermilo Borba Filho (escritor e dramaturgo pernambucano). Eu e os meus colegas do Teatro Estudante de Pernambuco freqüentamos a casa de Hermilo como quem freqüenta uma universidade. Toda a noite fazíamos leitura uns para os outros. Foi lá que eu li pela primeira vez O Auto da Compadecida, tendo na platéia ninguém mais, ninguém menos, do que o poeta João Cabral de Melo Neto.

CE: Houve um período em que sua defesa das tradições da cultura brasileira foi tachada de conservadora, retrógrada. Essas críticas o incomodaram?
AS: Eu sou um sujeito bem-humorado e faço disso um motivo de brincadeira. Uma vez um camarada me chamou de arcaico porque eu defendia a cultura brasileira em geral e a cultura popular em especial. Ele escreveu a seguinte frase: “Dos nordestinos nefastos ao Brasil já morreram Antonio Conselheiro, Padre Cícero e Lampião. Só falta agora Ariano Suassuna”. Pois bem, aí eu comecei a usar isso nas minhas aulas. Eu dizia, “Olhe, um sujeito desses, além de errado, é um incompetente. Está querendo me insultar e me faz um elogio?” Nunca pensei que eu tivesse uma dimensão tão grande, me comparar com Antonio Conselheiro, Padre Cícero, Lampião. Um profeta, um santo e um guerreiro? Comecei a me achar depois disso (risos).

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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