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BRONCKART, Jean Paul. Interacionismo Sócio-discursivo: uma entrevista com Jean Paul
Bronckart. Revista Virtual de Estudos da Linguagem - ReVEL. Vol. 4, n. 6, março de 2006.
Tradução de Cassiano Ricardo Haag e Gabriel de Ávila Othero. ISSN 1678-8931
[www.revel.inf.br].
INTERACIONISMO SÓCIO-DISCURSIVO: UMA ENTREVISTA
COM JEAN PAUL BRONCKART
Jean Paul Bronckart
Universidade de Genebra
ReVEL – Quais foram as áreas da Lingüística que influenciaram
mais as bases teóricas do Interacionismo Sócio-discursivo (ISD)?
Bronckart – Antes de responder a essa questão, tomarei a liberdade de,
primeiramente, ampliá-la, não me limitando apenas às influências da
lingüística, mas evocando também as bases, pelo menos as mais importantes,
de outras ciências humanassociais, em particular, da psicologia e da
sociologia. Em seguida, distinguirei, sem dúvida um pouco artificialmente, as
influências de ordem técnico-lingüísticas das de ordem mais nitidamente
epistemológicas e até filosóficas.
1.1. As influências “técnicas”
Nesse domínio, por mais surpreendente que possa parecer, o primeiro lingüista
que mencionaremos será Bloomfield (1933), pois a metodologia que ele
construiu (cf. a análise distribucional e a análise em constituintes imediatos)
forneceu instrumentos que foram, e continuam sendo, indispensáveis para toda
operacionalização de uma descrição e de uma classificação das empirias
lingüísticas. Não nos inscrevemos, portanto, no movimento, particularmente
vivo na França e em certos países latinos, que, após o desenvolvimento das
abordagens enunciativas eou pragmáticas, literalmente “diabolizaram” o
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estruturalismo e seus aportes. Em nossos estudos, que se voltam para a
organização e o funcionamento dos textosdiscursos, a primeira etapa consiste
sempre em uma identificação das categorias de unidades e de estruturas que
lhes são atestáveis, mesmo que depois prossigamos por outros procedimentos
de análise e de interpretação, que podem remeter à origem da identidade ou do
estatuto dos “objetos” gerados nessa análise estrutural inicial. De fato, a maioria
dos lingüistas contemporâneos procede como nós e exploram efetivamente os
métodos estruturais; em vez de mascarar essa situação, nós preferimos
explicitá-la e reconhecer nossa dívida ao olhar dessa corrente, da mesma forma
que, por outro lado, reconhecemos nossa dívida ao olhar de alguns aportes
teóricos e metodológicos de behaviorismo na psicologia. Dito isso, se
exploramos sem estado de alma, as técnicas provindas do behaviorismo
lingüístico, não aderimos, entretanto, à epistemologia que essa abordagem
subentende, como veremos no item 1.2.
Sem dúvida, a mais decisiva influência para o estabelecimento da caminhada
própria do ISD foi, no entanto, a obra de Culioli (1990, 2002, 2005), com sujo
contato se efetuou nossa verdadeira formação lingüística, e da qual três aportes
serão sublinhados. O primeiro consiste em um substancial alargamento da
metodologia bloomfieldiana: tentar, a partir dos enunciados “dados”, prever o
previsível como se fosse “o menos previsível”, de modo a ultrapassar o caráter
“local” dessa caminhada fundadora. Isso implica constituir corpus de
enunciados atestados assim como enunciados construídos, e, em seguida,
proceder a manipulações que visam a evidenciar o que há de comum e de
diferente nas famílias de enunciados, reenviando a um mesmo universo de
referência. O segundo aporte, mais propriamente teórico, tratou da reinterpretação
do estatuto das empirias lingüísticas, em termos de “marcadores”
e de “operações”. Qualquer que seja sua delimitação e seu estatuto do ponto de
vista estrutural (signo, sintagma, proposição), cada entidade lingüística
constitui (também) um marcador, isto é, um veículo ou um revelador material
de uma ou mais operações constitutivas do trabalho enunciativo subentendido
em toda produção verbal. Esse segundo nível de interpretação não anula o
primeiro, mas sim, evidencia que, do ponto de vista praxeológico, a identidade
de uma entidade verbal somente pode ser estabilizada sobre a base das
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operações que a subentendem (em outros termos, entidades lingüísticas
diversas constituem uma mesma marca, desde que materializem uma mesma
operação). O terceiro aporte é o da rede de conceitos introduzidos pelo autor
para designar e descrever as diferentes operações de linguagem*: as noções, as
relações primitivas e o esquema da lexis para reformular o estatuto da relação
predicativa e de seus constituintes de base; a extração, as indicações e os
diversos tipos de determinações para codificar os processos que se aplicam
secundariamente aos esquemas da lexis. Certamente, pode-se lamentar que essa
abordagem permaneça centrada nos enunciados, e não tenha, verdadeiramente,
integrado a dimensão textualdiscursiva, mas alguns alunos de Culioli
procederam a essa ampliação, Simonin-Grumbach (1975) tendo notadamente
introduzido a noção de tipos de discurso que nós retomamos tal qual em nossos
próprios trabalhos.
A terceira influência é, então, como se pode presumir, a das ciências dos textosdiscursos.
Os escritos de Volochinov (19291977) constituíram para nós uma
fonte de inspiração maior, na medida em que forneceram as bases de nossa
abordagem do estatuto da unidade-texto, de um lado, das modalidades de
interação entre as atividades de linguagem e os outros tipos de atividades
humanas, de outro. Além desses, seguramente, trabalhos próprios de Bakhtin
(cf. 1978, 1984), que, nos parece um pouco atrás em relação ao acento que
punha Volochinov sobre as dimensões praxeológicas e sócio-históricas da
atividade discursiva, propôs uma análise do estatuto dos gêneros textuais, de
um lado, dos mecanismos interativos que os organizam, de outro, que é
unanimemente aceito e por demais conhecido para que o comentemos
novamente. Nesse domínio, para descrever alguns fenômenos lingüísticos
locais, bem como para elaborar nosso modelo da arquitetura textual, tomamos
emprestados múltiplos trabalhos de autores com cujas orientações teóricas
gerais não necessariamente compartilhamos: estudos detalhados dos
mecanismos de conexão, de coesão (cf., por exemplo, Charolles, 1994) ou de
estruturação temporal (cf. Benveniste, 1966; Weinrich, 1973); elaboração de
* Nas expressões operations langagières, activité langagière, action langagière e pratiques langagières, o
termo langagière será traduzido pela expressão “de linguagem”, conforme já consagrada com a tradução
de Anna Rachel Machado. A expressão socio-langagier foi traduzida por “sócio-discursivo”. Em outros
casos, optamos pelo termo “linguageiro”, já bastante utilizado também em traduções do francês. Em caso
de exceções serão feitas notas de rodapé. (N.T.).
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modelos gerais da organização textual, como o de Roulet et al. (1985) e,
sobretudo, o modelo construído progressivamente por Adam (1990, 1992,
1999), autor com o qual estamos em permanente debate crítico e construtivo;
trabalhos, enfim, da corrente da narratologia, e de Genette (1972) em particular,
que evidenciam a complexidade e a heterogeneidade dos mecanismos
enunciativos-discursivos, com tal fineza de análise que apenas parcialmente
podemos explorar em nosso trabalho.
1.2. As influências “epistemológicas”
Como se verá na questão 2, o propósito do ISD não é, em si, propor um novo
modelo de análise do discurso. Certamente, efetuamos esse tipo de trabalho (e
isso durante várias décadas), mas apenas enquanto possa nos fornecer o auxílio
necessário para abordar nosso questionamento central, que é o do papel que a
linguagem desempenha, e, mais precisamente, as práticas de linguagem, na
constituição e no desenvolvimento das capacidades epistêmicas (ordem dos
saberes) e praxeológicas (ordem do agir) dos seres humanos.
Sob esse ângulo, nossa influência primeira é de Vygotski (19341997; 1999), que
elaborou uma psicologia de desenvolvimento à qual nós aderimos desde o fim
dos anos 1960. Tratar do desenvolvimento humano implica necessariamente
(em nosso ponto de vista) fazer opções epistemológicas claras, e, como veremos
a seguir em 2, Vygotski sobre esse ponto adotou um quadro essencialmente
inspirado nas proposições de Spinoza e de Marx-Engels. Para esses últimos
autores, o objeto primeiro de toda ciência humana não é mais, como era na
filosofia clássica, a relação que se instala entre o sujeito que pensa e o mundo,
mas sim, a práxis coletiva, ou ainda, “a atividade humana, enquanto atividade
objetiva, pois é na prática que o homem tem de fazer a prova da verdade, isto
é, da realidade e da potência de seu pensamento, a prova que é deste mundo”
(Marx, 1951: 23-4). Nessa perspectiva, as capacidades de pensamento ativo do
ser humano não podem derivar diretamente das propriedades físicas de seus
corpos ou de seus comportamentos objetivos; elas somente podem proceder,
como o mostra Engels em La dialectique de la nature (19251971) que a
reintegração, no homem, das propriedades da vida social objetiva, em seus
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aspectos de criação de instrumentos, de cooperação no trabalho e de linguagem.
O objetivo fundamental de Vygotski era propor uma análise da ontogênese
humana que fosse compatível com essas posições, o que o levou a elaborar um
esquema desenvolvimental que se pode resumir em cinco pontos: 1) o jovem
humano é dotado de um equipamento biocomportamental e psíquico inicial,
que, enquanto procede da evolução contínua das espécies, o dote de
potencialidades novas; 2) desde o nascimento, o jovem humano é mergulhado
em um mundo de pré-construtos sócio-históricos: formas de atividade,
coletivas, obras e fatos culturais, produções semióticas que emergem de uma
língua natural dada, etc.; 3) desde o nascimento, ainda, o ambiente humano
empreende caminhadas deliberadas de formação, que visam integrar o jovem
humano nessas redes de pré-construtos, ou que guiam sua apropriação destes
últimos; 4) no quadro desse processo de apropriação, a criança interioriza
propriedades da atividade coletiva assim como signos e estruturas de linguagem
que a mediatizam; 5) essa interiorização das estruturas e significações sociais
transforma radicalmente o psiquismo herdado e dá origem às capacidades do
pensamento consciente. Nessa perspectiva, é, então, a integração de elementos
semióticos e sociais que é constitutiva do pensamento propriamente humano.
Vygotski, entretanto, não pôde fornecer uma verdadeira validação
argumentativa ou empírica de seu esquema desenvolvimental, e é,
notadamente, para fazer face a esse problema que solicitamos a contribuição da
obra de Saussure. Na cronologia de nosso percurso, esse autor é, portanto,
nossa segunda referência epistemológica maior, mas ele tende, hoje, a tornar-se
nossa referência principal, em razão da importância decisiva das perspectivas
abertas por seus escritos (1916, 2002). Num primeiro momento, então,
exploramos a teoria saussureana do signo para validar as teses vygotskianas, ou
para mostrar em que a apropriação e a interiorização dessas entidades
semióticas podem “causar” a emergência do pensamento consciente humano.
Uma vez que os signos são, a princípio, imotivados (independência das
propriedades dos significantes em relação às de seu referente), sua
interiorização, é conferida ao funcionamento psíquico uma verdadeira
autonomia em relação aos parâmetros do ambiente. Esse caráter imotivado é,
no entanto, menos importante que o do arbitrário radical, noção que exprime o
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fato que, na medida em que eles se originam no uso social de uma comunidade
particular (e então de uma língua), os signos submetem as representações
individuais a uma reorganização cujo caráter é radicalmente não natural. O
significante de um signo (o termo fruta por exemplo) impõe, a uma só vez, uma
delimitação e uma federação das diversas imagens mentais que um humano é
suscetível de construir em sua interação solitária com esse tipo de objeto; e o
significado do signo é constituído pelo conjunto das imagens mentais que se
encontram assim submetidas pelo significante. As línguas naturais se
diferenciam não apenas por seus significantes aparentes, mas sobretudo pela
extensão e pela estrutura interna das imagens constitutivas dos significados,
como atestam os problemas de tradução, é, portanto, no quadro dessas formas
sócio-linguageiras particulares e arbitrárias que se organizam as representações
humanas. Nessa perspectiva, os signos são entidades representativas
desdobradas; apresentam-se como