“Ter o filho de um dalit é anomalia social”
Em entrevista a ÉPOCA, a cientista política Nanci Valadares, que prestou consultoria à TV Globo para a novela Caminho das Índias, analisa a trama e conta como funciona na realidade o sistema de castas na Índia
TABU NA VIDA REAL
A diferenciação entre as castas na Índia tem origem em um livro sagrado escrito há pelo menos 3 mil anos (confira na próxima página). Apesar de banido pela Constituição de 1950, o sistema continua vivo e ativo, graças aos costumes milenares do povo indiano, que são retratados na novela Caminho das Índias, da TV Globo. Para a cientista política Nanci Valadares, que auxiliou a emissora na preparação para a novela, a autora do folhetim, Glória Perez, usa com habilidade as ferramentas dramáticas para criar situações extremas, como o romance entre Maya (Juliana Paes) e Bahuan (Marcio Garcia) – um dalit, aqueles que não fazem parte de nenhuma casta. “Isso só ocorreria em uma situação na qual a falta de regras já estivesse completamente instalada”, diz.
Em entrevista a ÉPOCA, Nanci, PHD em política internacional pela New York University, explica que o sistema de castas é completamente imóvel, não permitindo ascensão a quem enriquece ou recebe educação. Hoje, há dalits muito ricos e influentes na Índia, como Mayawati, a governadora do Estado de Uttar Pradesh, o mais populoso do país, e Konakuppakatil Balakrishnan, o presidente da Suprema Corte. Boa parte dos 160 milhões de dalits, porém, vive em situação de extrema pobreza, e sujeita a sofrer violências quando se envolve com as castas superiores. Segundo um levantamento do Institute for Conflict Management, uma organização sem fins lucrativos baseada em Nova Déli, apenas em 2007 foram registrados 27 mil crimes contra dalits. Na entrevista, Nanci faz uma comparação entre a trama ficcional da novela e a cultura indiana atual.
ÉPOCA – Qual é o aspecto da sociedade indiana é mais bem retratado na novela?
ÉPOCA – É possível comparar o papel da família na Índia e no Brasil? Qual a maior diferença?
Foi esse sistema de castas que defendeu a integridade da cultura indiana face às inúmeras colonizações pelas quais ela passou
ÉPOCA – E a retratação do sistema de castas, está sendo fiel à realidade?
ÉPOCA – E o casamento com um estrangeiro também é mal visto? O sistema de castas está descrito no Rigveda, o mais antigos dos Vedas (textos sagrados) do hinduísmo, escrito por volta de 1.200 a.C. O Rigveda é composto por mais de mil hinos escritos em sânscrito, entre eles Purusa-sukta. Segundo esse texto, durante a criação do mundo um ser primitivo chamado Purusha foi sacrificado. A partir de quatro partes de seu corpo – boca, braços, coxas e pés – surgiram as castas, ou varnas. Brâmanes – vieram da boca e são a classe mais alta, a dos sacerdotes. Eles são os responsáveis por entoar as escrituras sagradas, uma responsabilidade muito importante, pois é por meio da comunicação oral que o conhecimento do hinduísmo é transmitido. Xátrias – vieram dos braços de Purusha. É a classe de guerreiros e governantes. Vaixiás – vieram das pernas. É a casta dos comerciantes, pessoas que viajam para trabalhar e com tarefas especializadas Sudras – é a última casta, que veio dos pés. São os artesãos, camponeses, operários e trabalhadores que realizam tarefas consideradas subalternas. Dalits
Juliana Paes, como Maya, a protagonista de Caminho das Índias. Ela está grávida do dalit Bahuan, interpretado por Marcio Garcia
Nanci Valadares – Um aspecto que está sendo especialmente bem retratado é o lugar que a família ocupa na formação da sociedade indiana. Como no Brasil, a família é uma instituição social muito importante, e a novela está trazendo um choque de ética para nós. Depois de novelas em que a violência e a falta de ordenamento social haviam sido enfatizadas, essa nos lembra a velha ordem social brasileira. Só que na Índia ela é bem mais marcada.
Nanci – A família indiana tem características bem diferentes da brasileira, embora ambas tenham importância grande no sistema social de cada cultura. Nós temos uma família nuclear, com o pai, o filho e a mãe, e a família extensiva, dos tios e dos avós, sendo que cada um vive na própria casa. Enquanto isso, na Índia, eles dividem na mesma casa, em uma espécie de “joint family”, ou família combinada. E, ao contrário do que muita gente pode imaginar, não é uma escolha que vem da pobreza, mas sim da formação social indiana. Recentemente o ator e diretor mais famoso do cinema indiano, Amitabh Bachchan, contou na [rede de TV americana] CNN que seu filho, Abhishek Bachchan, e a esposa, a atriz Aishwarya Rai, moram com ele. E todos são milionários.
Nanci – É preciso elogiar a inteligência dramática da [autora] Glória Peres. Ela está tratando a família e o sistema de castas dentro de situações que só a ambiguidade do drama pode permitir. Um exemplo é o Raj [interpretado por Rodrigo Lombardi] ter um filho com uma estrangeira [Duda, a personagem de Tania Khalill]. Esse filho não poderá exercer a função liberadora do espírito do pai porque não é um filho de um matrimônio hinduísta. Ao mesmo tempo, ele terá em casa um filho que não é dele, mas sim de um pária, um dalit [Bahuan, personagem de Marcio Garcia], algo que quebra todos os votos do hinduísmo, porque o dalit está fora da religião. Isso é um enigma dramático, que só uma concepção inteligente poderia criar.
Nanci – Sim, pois mesmo quando o casamento é feito fora da ordem há problemas. Por exemplo, se o filho mais novo se casa antes do mais velho, isso é motivo para a família excluir esse filho mais novo. Se o noivo fosse um estrangeiro seria ainda mais problemático.