O que me chamou a atenção no despacho da juíza que suspendeu o Whatsapp na semana passada foi ela ter considerado que o aplicativo tratara o Brasil como "republiqueta". Suas razões para tanto: a empresa controladora do aplicativo havia respondido em inglês a uma comunicação da 2ª Vara Criminal de Duque de Caxias (RJ).
Não vou discutir o descabimento de uma empresa —qualquer que seja sua nacionalidade— contestar uma autoridade brasileira, no Brasil, em língua que não seja nacional. A juíza estava certa em não gostar da resposta em inglês, mas por razões de boa prática jurídica. Já falar de " republiqueta" me pareceu meio forte.
Ninguém gostou da atitude incompetente —vista pela juíza como arrogante— da empresa norte-americana. Porém, quais seriam as reações se a empresa em questão fosse, digamos, paraguaia, e a carta, escrita em espanhol ou guarani?
A atitude da empresa controladora do Whatsapp revela mais provincianismo burro que imperialismo sádico. A reação da juíza, por sua vez, denota egocentrismo, paranoia e complexo de vira-latas.
Entendo que ainda exista gente que considera a língua inglesa um instrumento de dominação política. Mas acho essa opinião cada vez mais anacrônica. Pode ter sido assim no passado. Hoje, essa conquista já foi feita: perdeu playboy. O inglês é lingua franca. Lidemos com essa realidade.
A língua inglesa é utilizado por cerca de 2 bilhões de pessoas no planeta. É a terceira em número de falantes nativos, mas uma parcela considerável da população mundial apropriou-se dela e a utiliza como facilitador de contatos e sinergias no mundo globalizado. É o idioma no qual converso com o meu editor italiano e com meus amigos japoneses.
Como a juíza, reclamamos do monolinguismo alheio; porém, a exemplo dos norte-americanos, não falamos outras línguas. Apenas 5% da população brasileira declaram dominar alguma língua estrangeira. De acordo com uma empresa de consultoria global, entre os funcionários de multinacionais de 76 países, os brasileiros ficaram na 67ª colocação no domínio do inglês.
O zelo com a pureza linguística é maior aqui do que lá. São comuns nos EUA avisos de utilidade pública em outras línguas, e uma das diversões que eu tenho no metrô de NY é, a partir do meu francês, tentar decifrar os anúncios escritos em crioulo haitiano.
Já uma pessoa que não fale nada de português passa sufoco no Brasil.
Seria ótimo que o português fosse uma língua global. Seria uma vantagem enorme para nós. Trataríamos com o mundo em nossos próprios termos, em nossa própria língua. Pena que a realidade seja outra.
O lapso dos advogados do Whatsapp é imperdoável, e cabeças deveriam rolar, se é que ainda não rolaram. No entanto, é um sintoma da falta de importância relativa da língua portuguesa no contexto global.
Não devemos nos escudar no fato de que a língua portuguesa é a sexta mais falada no mundo, como se isso fosse garantia de importância e penetração. Trata-se de uma língua belíssima, mas concentrada em poucos países.
Quem nasceu em língua exótica deveria exibi-la e explicá-la. A literatura faz isso. A tradução literária, também.
Ao longo dos anos, a Biblioteca Nacional vem implementado programas de formação de tradutores e de auxílio à tradução de obras em português para línguas estrangeiras. No último governo, o programa apresentou bons resultados, mas sofreu com dificuldades orçamentárias.
Recentemente, tive um livro traduzido para o inglês publicado nos Estados Unidos (sem auxílio oficial). A campanha de lançamento me levou a 11 cidades americanas. Em todas elas, ouvi de agentes, editores e livreiros locais que existe grande interesse em literatura vinda do Brasil, mas que os custos de tradução tornam quase inviável a publicação de obras de ficção brasileira para o inglês.
Na mesma semana em que soube que umas das melhores tradutoras do português para o inglês, Alison Entrekin, ainda não havia garantido financiamento para uma muito necessária nova tradução de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, meu editor americano foi a Oslo conhecer autores e traduções locais —tudo às custas do governo da Noruega.
Advinha quem acaba publicado, Guimarães Rosa ou Karl Ove Knausgard?
Os programas de apoio à tradução em curso na Biblioteca Nacional explicam nossa língua e nossa realidade para o resto do mundo por meio da literatura. Custam pouco perto do impacto que podem proporcionar. Merecem ser fortalecidos, expandidos e mais bem explorados, e seria ótimo que o Ministro da Cultura tivesse isso em mente.
(Ah! E também ajudam a aumentar nossa autoestima nacional e a não achar, como a juíza, que somos " republiqueta" só porque um incompetente que não falava português nos mandou uma carta em inglês.)