Publicado na Revista digital “Acolhendo a língua portuguesa”, USP, 2008.
Palavras chave: Analfabetismo no Brasil; matriz sociolingüística; a comunidade falante de português no Brasil; dimensões sócio-históricas.
1. O analfabetismo está na raiz de todos os grandes problemas sociais no Brasil. Constitui um mal radicado na sociedade brasileira, praticamente tão antigo quanto o próprio país, e infenso às diversas campanhas de alfabetização que surgem no bojo de políticas educacionais. Este artigo é a parte inicial de um estudo mais abrangente sobre as contribuições da Sociolingüística para uma política de alfabetização no Brasil no qual refletimos sobre o caráter perverso e persistente do analfabetismo brasileiro, situando-o numa matriz sócio-histórica e investigando suas causas na ecologia sociolingüística da comunidade de fala brasileira. Nesta primeira parte, levantamos informações censitárias que dão conta das dimensões e características do problema. Esses números nos mostram que a taxa de alfabetização no Brasil é uma das mais baixas do mundo, mesmo considerando apenas os países do Hemisfério Sul. No entanto, se comparamos o Brasil com outros países, verificamos que nosso país conta com dois fatores favoráveis à disseminação da cultura letrada: a língua de instrução na escola brasileira é o Português, que é justamente língua materna de mais de 90 % da população nacional[1]. Essa é uma vantagem que poucos países em desenvolvimento têm, já que em sua maioria são multilíngües, o que torna difícil e onerosa a alfabetização dos alunos em sua língua materna. Outro fato que favorece a aprendizagem da leitura e escrita no Brasil é o caráter razoavelmente fonêmico do sistema ortográfico do português. Diferentemente do que acontece com o português, em muitas línguas a codificação ortográfica está longe de refletir a pronúncia vigente .Confrontando essas duas circunstâncias com os números do analfabetismo, coloca-se a pergunta: Por que o Brasil ainda não conseguiu alfabetizar a sua população? Buscamos a resposta na matriz sociolingüística da comunidade de fala brasileira, cujas peculiaridades examinamos à luz dos processos sócio-históricos que a plasmaram.
A segunda parte do estudo, que em breve será publicada, é dedicada a analisar a reflexão lingüística como uma estratégia valiosa na pedagogia da alfabetização _ infantil e de jovens e adultos. O principal objeto dessa reflexão sistemática, de professores e alunos, são os aspectos isomórficos e heteromórficos entre as modalidades oral e escrita do português do Brasil, com especial atenção para regras variáveis, fonológicas e morfossintáticas. Acreditamos que a reflexão sobre as modalidades oral e escrita da língua pode conferir mais eficácia ao processo de alfabetização, na medida em que familiariza os alfabetizadores com noções importantes das ciências da linguagem que estão subjacentes à aprendizagem da leitura e da escrita. Ilustramos a tese com a análise de textos de alfabetizandos, levando em conta aspectos da fonologia supra-segmental e segmental do Português do Brasil e algumas de suas intersecções com a morfossintaxe.
Observe-se ainda a mudança no conceito de analfabetismo. Em
O Quinto Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF), divulgado em setembro de 2005, pelo Instituto Paulo Montenegro - IPM - (Disponível em: < www.ipm.org.br>. Acesso em 26 de junho de 2006 e RIBEIRO, 2004), mostrou que só 26% dos brasileiros na faixa de
O censo de 2000 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) considerou como analfabetos 10,6% da população entre 15 e 64 anos, ou seja, 11.180.813 pessoas de um montante de 104.997.015.
Em 2003, o índice de analfabetismo absoluto detectado pelo IPM, responsável pelas pesquisas que subsidiam o INAF, ficou em torno de 8% e são considerados em um nível rudimentar de alfabetismo cerca de 30% dessa população. Dois anos mais tarde nova pesquisa do IPM registra uma queda de um ponto percentual no índice de analfabetismo. De acordo com os dados apresentados pelos censos demográficos do IBGE e outros sistemas avaliativos, percebemos que não houve quedas significativas, e sim, um movimento lento e gradual nos índices. É de se concluir portanto que as campanhas e programas governamentais destinados à erradicação do analfabetismo no país desde o final do século XX não têm dado conta de capacitar a população a ler e escrever, habilidades indispensáveis ao exercício da cidadania em uma sociedade cada vez mais letrada.
De 1920 até 1980, percebemos uma queda em termos percentuais, porém os números absolutos aumentaram de 11,4 milhões em 1920, para 18,7 milhões em 1980. Só depois dessa década os números do analfabetismo começam a apresentar leve diminuição, caindo em 2000 para 16,3 milhões, considerando sempre as pessoas com mais de quinze anos.
Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2001 das Nações Unidas, 55% dos países do mundo apresentam melhor desempenho na alfabetização que o Brasil. Na América Latina 72% dos estados nacionais têm taxa de analfabetismo menor que a brasileira. As estatísticas internacionais mostram também que a posição relativa do Brasil no que concerne à taxa de analfabetismo não espelha a sua situação relativa em termos de renda per capita. Vejamos: apenas 34% dos países no mundo e 28% na América Latina têm renda per capita maior que a brasileira, mas a taxa brasileira de analfabetismo é mais de que o dobro da taxa típica exibida por países com a mesma renda per capita.
O analfabetismo é um problema histórico. Analisando-o nessa perspectiva, verificamos que ele apresenta características novas e velhas ao mesmo tempo. Trata-se de um problema relativamente novo porque só foi caracterizado como tal a partir do século XIX, e é também um problema velho porque, desde a sua origem, está relacionado a fatores sócio-demográficos, tais como: gênero, raça, localização geográfica, faixa etária, renda familiar e, principalmente, ao processo de urbanização.
Dados fidedignos sobre a questão estão agora disponíveis no Mapa do Analfabetismo no Brasil, que oferece um diagnóstico atualizado, reunindo dados demográficos, considerados nas suas diferentes dimensões. Trata-se de uma iniciativa do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), que processou resultados do Censo Escolar do MEC, do IBGE e do PNUD (Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas – United Nations Development Program – UNDP). As informações foram agrupadas para todos os municípios do país, considerada a divisão político-administrativa do ano de 2000, e permitem consulta individualizada.
Segundo o referido mapa, o número de analfabetos varia bastante de região para região. No Nordeste, o número de analfabetos é muito maior que nas regiões Sul e Sudeste. Na cidade de Guaribas no Piauí, por exemplo, a taxa de analfabetos chega a 59%, enquanto que em Niterói, no estado do Rio de Janeiro, o índice de analfabetismo é apenas de 3.6%. Há de fato uma forte correlação negativa entre índices de analfabetismo e o IDH[2] de cada região.
Quanto à renda familiar, calculada em salários mínimos, ficou confirmado que quanto mais alta essa renda, mais acesso a família terá à alfabetização. O analfabetismo chega a ser 20 vezes maior nas famílias mais pobres. Nos domicílios com renda superior a dez salários mínimos, o índice é de apenas 1,4. Já naqueles cuja renda é inferior a um salário mínimo o índice alcança 29%. A relação entre renda e alfabetização torna-se extremamente grave quando se leva em conta que o Brasil tem uma das piores taxas de distribuição de renda no mundo, perdendo apenas para Serra Leoa, na África. Em 2003, 1% dos brasileiros mais ricos detinham uma renda equivalente aos ganhos dos 50% mais pobres. (Disponível em: < www.ipea.gov.br>. Acesso em 26 de junho de 2006). Políticas públicas de distribuição de renda nos últimos anos têm tentado corrigir essa distorção, mas os resultados obtidos ainda são modestos.
Em relação a gênero, foi observado que as mulheres apresentam uma taxa de alfabetização superior à dos homens. Esse resultado veio confirmar informações do INAF 2001 de que as mulheres se destacam mais que os homens nas questões que envolvem leitura e escrita.
Outra variável pesquisada pelo Inep em relação ao analfabetismo foi raça. Constatou-se que existem três vezes mais brancos alfabetizados do que negros e pardos, o que confirma importância do fator raça na desigualdade social no Brasil.
Mesmo não desconsiderando essas diferenças entre segmentos sociais, as pesquisas confirmam que o analfabetismo brasileiro não está restrito a nenhum grupo: ele é um mal que atinge crianças, jovens, adultos e, principalmente, idosos. Segundo os dados disponíveis, 7,4% da população entre 10 e 19 anos é analfabeta, enquanto o índice de analfabetismo na faixa etária de 60 anos ou mais atinge a marca de 34%.
Com relação à dicotomia rural x urbano no país, há que se observar que, no meio rural brasileiro, a taxa de analfabetismo é três vezes superior à da população urbana. A população rural apresenta um índice de analfabetismo de 28,7% e a urbana, de 9.5%. Cabe aqui uma observação: é comum encontrarmos, na população radicada no campo, pessoas, mais freqüentemente homens, que não sabem ler e escrever e, no entanto, têm razoável habilidade para lidar com números e quantidades. As competências que demonstram em práticas sociais de letramento matemático, ou numeramento, são adquiridas nas rotinas de compra e venda de produtos agropecuários e em transações bancárias.
A simples constatação do percentual de analfabetos em áreas urbanas pode levar-nos à conclusão equivocada de que nessas regiões o analfabetismo seja problema social de pouca relevância. Não é bem assim. Há uma elevada parcela da população não-alfabetizada nas grandes cidades brasileiras. Em 125 municípios, de um total de 5.507, está um quarto dos analfabetos do país e 586 municípios respondem pela metade dos analfabetos da população com 15 anos ou mais. Entre os 100 municípios com o maior número de analfabetos estão 24 capitais. Na cidade de São Paulo, registram-se 383 mil e no Rio de Janeiro 199 mil. Essa concentração de analfabetos nas grandes cidades explica-se pelo alto contingente de migrantes que deixam as áreas rurais e demandam os centros urbanos, na busca por melhores condições de vida, indo radicar-se na periferia de cidades de médio e grande porte. Ali reproduzem e preservam muitos traços próprios de sua cultura pré-migratória, inclusive as características de sua linguagem. São populações que podem ser descritas como rurbanas (BORTONI-RICARDO, 1985).
Os dados relativos às taxas de analfabetismo nas áreas urbanas são indiciários de duas importantes dimensões na caracterização das raízes rurais da sociedade brasileira: o caráter rurbano dos grupos sociais que habitam a periferia das cidades, já mencionado, e as distorções na própria caracterização do que é área urbana e rural no país. Cientistas sociais, como o professor Eli da Veiga e seus associados, têm mostrado que as estatísticas oficiais relativas à questão se ressentem de uma metodologia mais atualizada.
Em seu livro “Cidades Imaginárias”, Eli da Veiga considera equivocados os critérios empregados pelo próprio IBGE. O equívoco na metodologia censitária tem origem em um decreto do Estado Novo de 1938, segundo o qual é área urbana toda sede de município ou distrito, independentemente do tamanho e das características das atividades produtivas de sua população. O autor argumenta que os parâmetros da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) são mais adequados que a metodologia oficial do IBGE. Segundo a OCDE, para um município ser considerado urbano, teria de apresentar uma densidade demográfica de 150 habitanteskm² e uma população nunca inferior a 50 mil habitantes. Se aplicados esses parâmetros, os 5.507 municípios brasileiros considerados urbanos passariam a 411.
A análise dos números do analfabetismo que leva em conta as variáveis sociodemográficas, como renda e o IDH regional, entre outras, deixa patente que o Brasil tem o seu próprio apartheid