Quando usamos os pronomes pessoais de terceira pessoa (ele-ela, eles-elas) ou os pronomes demonstrativos “ o outro”, “ a outra”, “um”, etc. estamos sempre nos referindo a alguém ou alguma coisa mencionada no discurso. Os especialistas dizem que esses pronomes são anafóricos, isto é, remetem a algo que foi mencionado antes. Eles são diferentes do pronome de primeira pessoaeu” e de segunda pessoatuouvocê”, que se referem, respectivamente, à pessoa que está falando e à pessoa que está ouvindo e por isso não suscitam dúvidas. os pronomesele”, “ela”, “outro , por se referirem a um termo mencionado anteriormente, podem dar origem a ambiguidades: o ouvinte pode não entender de pronto a quem ou a quê o pronome se refere. Quando isso acontece numa conversa, um dos participantes pode perguntar: “Ele quem?” solicitando mais dados para facilitar sua compreensão. Na língua escrita o leitor não pode pedir informações desse tipo e por isso o emprego dos pronomes de terceira pessoa tem de ser cuidadoso de modo a não provocar ambigüidades. Narradores experientes  valem-se de várias estratégias discursivas para que não pairem dúvidas sobre a identidade dos personagens a quem estão-se referindo usando os pronomes de terceira pessoa. Dizem, por exemplo, “o primeiro”, “o segundo”, “este último”, “aquele”, etc. Narradores menos experientes, como é o caso de crianças nas séries iniciais, ainda não dispõem dessas estratégias. É o que acontece com Tatiana quando diz:

 

 A2- Era João, Julião e Sebastião. E ai ele olhô na garrafa pensanu que era uma luneta e ele falô: tô venu uma casa perdida na areia branca. Ai o otro falô que eles precisavu encontrar ela.

 

      Não sabemos a quem Tatiana se referiu quando empregou os pronomesele” e “outro”. Para evitar ambiguidade, a aluna precisaria ter repetido cada nome. Poderia também referir-se a eles usando recursos como: “o primeiro”, “o segundo”, “o último”. Mas esses recursos não são comuns na língua oral. Aparecem mais na escrita porque nessa modalidade o leitor pode recuperar as informações voltando no texto e verificando a ordem de aparecimento dos nomes.

    Com muita freqüência nossos alunos vão usar os pronomes de terceira pessoa em textos orais e escritos como a Tatiana os usou e os professores terão de mostrar a eles que o texto não está claro e que eles precisam explicar melhor a quem se referem. Para tornar essas noções mais claras, estamos incluindo alguns fragmentos de poemas  transcritos com algumas adaptações. Podemos verificar  em que casos os pronomes de terceira pessoa estão suscitando uma ambigüidade e em que casos a compreensão não está prejudicada.

 

O pato ganhou sapato,

Foi logo tirar retrato.

Mas ele estava muito apertado

E ele ficou duro, sem graça

Diante do macaco retratista

 

O primeiro pronomeelepoderia suscitar uma ambigüidade: ele refere-se a “sapatoou a “pato”? Os professores poderão mostrar a seus alunos que a interpretação mais razoável é que o pronome se refira a “sapatoporque é lógico pensarmos em sapatos apertados. o segundoeletambém poderia criar uma ambiguidade, mas é mais lógico pensarmos que o pato, e não o sapato, ficou duro e sem graça diante do retratista. Para evitar ambiguidade pode-se substituir cada ocorrência de “elepelo nome. O texto então ficaria assim:

 

O pato ganhou sapato,

Foi logo tirar retrato.

Mas o sapato estava muito apertado

E o pato ficou duro, sem graça

Diante do macaco retratista .

 

(Adaptado de um poema de Mário Quintana[1])

 

Será oportuno perguntar aos alunos qual das duas versões preferem e por quê.

 

        Há ainda algumas características interessantes na fala das crianças que estamos comentando. André, o nosso aluno A3, quando estava imitando o capitão Perna de Pau, disse: “Se você fazê barulho e saí daí eu vô te levá pro mar”. Observe as formas verbais “fazê” e “saí”. Essas são formas do futuro do subjuntivo. Nos verbos regulares essas formas coincidem com a forma do infinitivo, por exemplo: “se eu ganhar o campeonato, vou ganhar uma medalha”. A primeira ocorrência de “ganhar” está conjugada no futuro do subjuntivo. A segunda ocorrência é a forma do infinitivo do verbo. Nos verbos irregulares o futuro do subjuntivo é diferente da forma do infinitivo[2].Por exemplo: “se você fizer questão, vou lhe fazer uma visita”. As formas do subjuntivo são mais usadas na língua escrita. Na modalidade oral há uma tendência a serem substituídas por outras formas verbais mais usuais. Especialmente no caso do futuro do subjuntivo dos verbos irregulares tendemos a substituí-las pela forma do infinitivo como fez a menina Tatiana. Mas temos de nos lembrar de  que um enunciado como “Se você fazê barulho” será mal recebido numa situação em que os participantes esperam que seja usada a forma prevista na gramática normativa: “Se você fizer barulho”. Ao chegar à escola para iniciar sua educação fundamental, as crianças ainda não conhecem, nem usam espontaneamente, as formas do futuro do subjuntivo de verbos irregulares. Essas formas são parte dos recursos comunicativos que vão acumular durante sua escolarização. Alguns verbos irregulares mais comuns, como “fizer”, “trouxer”, “vier” etc. devem merecer especial atenção em sala de aula.  Já as formas do futuro do subjuntivo dos verbos regulares não precisarão dessa atenção porque essas as crianças já sabem empregar correntemente.   Não é preciso tampouco ensinar às crianças o nome dos tempos e modos verbais, nem fazê-las conjugar verbos irregulares e regulares. Basta criar oportunidades para que as crianças usem as formas do futuro do subjuntivo naturalmente.

 

       Vejamos alguns exemplos dessa prática:

 

1) Os professores poderão elaborar com as crianças um convite para uma festa de aniversário parecido com este pedindo-lhes que preencham a lacuna.

 

“No dia 12 deste mês será o meu aniversário. Vou fazer uma festa e estou convidando você. Se você ------- a minha festa vou ficar muito feliz”.

 

 É de se esperar que elas sugiram a forma “vier”. Se aparecer a forma “vir” do infinitivo, Os professores devem mostre a elas quando usar “vir” e quando usar “vier”[3].

 

 

2) Poderão também  elaborar junto com os alunos anotações para a agenda, como esta, onde também a lacuna deverá ser preenchida pelos alunos.

 

“Na segunda-feira que vem vamos encapar nossos livros. Por isso cada aluno deve trazer papel e fita adesiva. Quem ------- poderá encapar também com plástico”.

É provável que as crianças espontaneamente sugiram a forma “quiser”.

 

3) Vejamos mais um exemplo. Os professores vão elaborar com os alunos um lembrete semelhante a este para ser levado aos pais. Novamente os alunos vão preencher a lacuna.

 

“Queridos pais, amanhã vamos comemorar o dia das crianças. Todos os alunos devem trazer um pratinho de doce ou salgados. Quem não --------- os doces ou salgados, pode trazer uma garrafa de refrigerante”.

 

       Ao fazer esse exercício os professores vão incentivar as crianças a fornecer a forma verbal “trouxer” para preencher a lacuna. Elas também poderão sugerir formas equivalentes, como por exemplo: “puder trazer”, “quiser trazer” etc.

 

       Há ainda outras formas de se trabalhar com o futuro do subjuntivo em séries iniciais sem que seja preciso recorrer à memorização ou à excessiva metalinguagem gramatical.

       Os professores podem levar para sua sala textos literários bem acessíveis como o poema “Ou isso ou aquilo” de Cecília Meireles. Junto com os alunos vão reescrever  os versos, usando formas do futuro do subjuntivo:

 

Os versos no original

Os versos reescritos usando-se o futuro do subjuntivo

 Ou se tem chuva e não se tem sol.

 

Se tiver chuva não se tem sol.

 

Ou se tem sol e não se tem chuva.

 

Se tiver sol, não se tem chuva.

 

Ou se calça a luva, ou se põe o anel.

Se calçar a luva, não se põe o anel.

 

Ou se põe o anel e não se calça a luva.

 

 

Se puser o anel, não se calça a luva.

 

 

       Vamos voltar mais uma vez à conversa das crianças, relendo essas falas:

 A2- Ele pensô que tinha um tesouro de verdade.

 A1- Ele pensô que o capitão Bonança era rico          

 P-  E como era o tesouro do capitão Bonança?         

 A3- Tinha uma foto da Maribel, uma receita de pexe assado e um rosário           

 P- E o dinhero, onde estava o dinhero?          

 A2- Ele pensô que o dinhero tava tudo no cofrinho,

 

   Reparem que, tanto a fala de Tatiana (A2) quanto a fala de Daniel (A1) são comuns na linguagem de crianças e adequadas em interações informais. Mas podemos mostrar às crianças outras variantes dessas sentenças em que é usado o imperfeito do subjuntivo. As variantes com imperfeito subjuntivo são mais adequadas em interações em que os participantes optaram por uma linguagem mais formal ou então na linguagem escrita. Observe o quadro seguinte:

 

Variantes empregadas pelas crianças

Variantes com emprego do imperfeito do subjuntivo

Ele pensô que tinha um tesouro de verdade.

Ele pensô que tivesse um tesouro de verdade.

Ele pensô que o capitão Bonança era rico.

Ele pensô que o capitão Bonança fosse rico.

Ele pensô que o dinhero tava tudo no cofrinho.

Ele pensô que o dinhero estivesse tudo no cofrinho.

 

 

 

 

     É possível que as formas do imperfeito do subjuntivo apareçam espontaneamente na fala de seus alunos, como na canção infantil:

“Se eu fosse um peixinho e soubesse nadar

  Eu tirava a Lucinha do fundo do mar”.

 

Os professores não precisam enfatizar a terminologia gramatical dos tempos verbais, nem conjugar esses tempos em todas as pessoas verbais, mas devem ficar atentos para o emprego dessas formas, sugerindo-as aos alunos sempre que  elas forem mais adequadas à formalidade da interação. Devem também enfatizar a grafia das formas do imperfeito do subjuntivo, que são sempre escritas com o dígrafo “ss”: “se eu fosse”; “se ele quisesse”; “se nós pudéssemos” etc.

 

       Nos fascículos da Fala para a Escrita 1 e 2. que mencionamos ao início do capítulo, eu transcrevia, ao final, uma troca de correspondência com professores. Vou também terminar este texto, transcrevendo duas dessas cartas.

 

 

 

       Cara colega autora do fascículo,

 

        Foi bom ler este fascículo porque pude refletir melhor sobre algumas idéias que já tinham sido apresentadas nos fascículos anteriores referentes às pronúncias comuns no nosso português e tomar conhecimento de outras.Tenho procurado ficar muito alerta para características da minha fala e  escrita  e da de meus alunos. Por exemplo, quando um deles diz:”Você passou muito dever pra mim fazer”, às vezes os próprios colegas dizem:” É pra eu fazer que a gente diz”. Estou também prestando atenção no uso da concordância não-redundante nos nomes e na concordância de terceira pessoa do plural. Às vezes até eu mesma quando estou distraída deixo de fazer a concordância. Vou reparar mais nas nossas falas para ver se flexionamos o verbo com mais freqüência quando o sujeito for uma pessoa, quando  vier logo antes do verbo e também quando as formas do singular e do plural são bem diferentes. Já comecei a copiar exemplos de concordâncias, e depois quero enviá-los a vocês. Vou também ficar atenta para o emprego dos pronomes de terceira pessoa e da forma “a gente” e para o uso de formas do modo subjuntivo. Tenho pensado em exercícios que posso fazer com meus alunos para que eles fiquem mais familiarizados com essas formas. Mas ainda tenho algumas dúvidas sobre o que venho estudando: Como saber em que momentos temos de monitorar a nossa fala? Devo reagir da mesma forma  quando os alunos cometem erros na fala e na escrita? Por hoje fico por aqui. Aguardo sua resposta.

                              Abraços

                              Professora Maria Elisa

 

 

Querida Maria Elisa, que bom saber que você está desenvolvendo suas habilidades como professoras pesquisadora. Todas essas regras variáveis que discutimos como a concordância nominal não-redundante; a concordância do sujeito  na terceira pessoal do plural, com o verbo na terceira pessoa do singular; o emprego do pronome sujeito com função de objeto; a substituição de formas do modo subjuntivo por formas do modo indicativo ou do infinitivo e as outras que temos comentado são muito comuns na linguagem dos nossos alunos que estão começando a ler e a escrever. Se você ficar bem atenta a esses usos, vai saber como orientá-los sempre que eles tiverem de transitar de uma fala espontânea não-monitorada para uma fala monitorada. Saber reconhecer os momentos em que temos de monitorar nossa fala não é difícil. Temos de empregar uma linguagem monitorada principalmente na língua escrita, e, na língua oral, sempre que nossos interlocutores tenham a expectativa de conduzir a interação em linguagem formal. Acostume seus alunos a identificar, no seu dia-a-dia, nos programas e televisão, e nas histórias que leem, situações interacionais em que as pessoas têm de monitorar sua fala. Façam pequenas representações ou jogos que lhes deem oportunidade de refletir sobre o processo da monitoração na fala. Lembre-se de que, cada vez que discutimos os empregos das variantes de uma regra variável, estamos facilitando aos alunos ampliação de seus recursos comunicativos. E principalmente, lembre-se de que, na língua oral, seus alunos e todos nós temos mais flexibilidade. Os “erros” que cometem são simplesmente variantes de pouco prestígio de regras variáveis. Quando eles empregam essas variantes em situações que não exigem formalidade, estão-se comportando adequadamente. Em situações formais e na língua escrita, mostre sempre a eles as variantes adequadas à linguagem monitorada Muito obrigada pela sua carta, vou esperar outras.

 

 Professora Stella Maris

 

 

 

 

Referências

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália.Novela Sociolingüística.São Paulo, Contexto, 1997.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O Professor Pesquisador.São Paulo, Parábola Editorial, 2008.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, agora? Sociolingüística & Educação. São Paulo, Parábola Editorial, 2005.

 

 

 

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo, Parábola Editorial, 2004.

BORTONI-RICARDO,Stella Maris. ”Variationist Sociolinguistics”  Hornberger, Nancy e Corson, David (org.) Encyclopedia of language and education, volume 8,  pp. 59-67, 1997.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris e DETTONI, Raquel. “Diversidades lingüísticas e desigualdades sociais” in Cox, M.I. e Peterson A. A. ( orgs.) Cenas de  sala de aula, Campinas, Mercado de Letras, 2001 pp. 81-103

DETTONI, Raquel. “Interação em sala de aula: as crenças e as práticas do professor”. Dissertação de mestrado inédita. Universidade de Brasília, 1995

HORA, Dermeval da (org.). Estudos sociolingüísticos-perfil de uma comunidade , João Pessoa, VALPB, 2004.

KURI, Adriano da Gama. 1.000 perguntas – Português  Rio de Janeiro, Editora Rio em convênio com Faculdades Integradas Estácio de Sá. 1983

MOLLICA, Maria Cecília,  A influência da fala na alfabetização. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2000.

MOLLICA, Maria Cecília. Da linguagem coloquial à escrita padrão.  Rio de Janeiro, 7Letras, 2003.

OMENA, Nelize P. “As influências sociais na variação entre nós e a gente na função de sujeito” ,Oliveira e Silva, Giselle M. e Scherre  Maria Marta P. (orgs.) Padrões sociolingüísticos, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp. 311-323, 1996.

SCHERRE, Maria Marta P. Doa-se lindos filhotes de poodle-variação lingüística, mídia e preconceito. São Paulo, Parábola Editorial, 2005.

TARALLO, Fernando. e DUARTE, Maria Eugênia.”Processos de mudança lingüística em processo: a saliência vs. não saliência de variantes”.Ilha do Desterro ,vol. 20, pp. 44-58, 1988.

 

 

 

 

 

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