O Brasil tem hoje o grande desafio de alfabetizar os seus analfabetos e, para tanto, deve considerar as alterações que o próprio conceito de analfabeto sofreu ao longo dos anos. A mudança no conceito, consequentemente, implica mudança em número de pessoas que necessitam ter acesso à educação. Não é mais possível aceitar a situação como se encontra, é necessário considerar que
é impossível a um país desenvolver-se no século XXI quando sua população ainda não resolveu problemas do século XIX. A comparação não é exagerada. Ainda não conseguimos ensinar nossas crianças a ler e a escrever, coisa que outros países já fazem há mais de 100 anos. O resultado final é termos só 26% de nossa população entre 15 e 64 anos plenamente alfabetizada (IOSCHPE, 2006).
A vergonha de não ser alfabetizado e pertencer a uma sociedade letrada é mais evidente que a sofrida em épocas anteriores, quando uma minoria da população brasileira tinha acesso a esse bem cultural, que é a escrita. No restante deste texto, relatamos alguns episódios ilustrativos da marginalização que é imposta aos cidadãos não-alfabetizados.
Ilustrando o (an)alfabetismo funcional
Episódio 1
Este episódio relata uma experiência vivida por uma aluna da disciplina Fundamentos da Educação de Jovens e Adultos em faculdade do Distrito Federal.
A referida aluna estava em uma parada de ônibus na cidade de Gama - DF aguardando uns colegas para fazerem um trabalho da disciplina citada. A parada de ônibus estava cheia de pessoas que iriam para os mais variados itinerários. Entre essas pessoas havia uma senhora que aparentava ter aproximadamente 60 anos de idade. A aluna observou que, à medida que os ônibus passavam as pessoas embarcavam. O ponto do ônibus ia ficando vazio, a senhora parecia inquieta e olhava o itinerário dos ônibus como que tentando identificar o seu. Quando parecia terem passado todos os ônibus que faziam aquele percurso restavam no ponto apenas a senhora e a aluna. Imediatamente a senhora entrou na padaria que ficava logo atrás da parada e comprou um guaraná de latinha, retornou para o ponto do ônibus e perguntou para a aluna onde estava escrito na latinha a palavra “guaraná”. A aluna lhe informou e, para sua surpresa, a cada ônibus que passava a partir de então, a senhora olhava o itinerário e conferia com a palavra “guaraná”. A aluna pode deduzir que a senhora estava querendo ir para a cidade de Guará-DF.
(Episódio relatado por Maria Alice Fernandes de Sousa)
Esse fato revela o quanto os conhecimentos de leitura e escrita fazem falta, sobretudo se a pessoa vive em uma comunidade urbana, em que esses são solicitados frequentemente.
Para Tfouni (2006), contemporaneamente, todas as pessoas usuárias de uma língua estão imersas em práticas de letramento, portanto não seria conveniente asseverar que o não-alfabetizado seja iletrado. Podemos, com base no episódio citado, afirmar que a senhora, ao valer-se da leitura da palavra “guaraná” para associá-la à palavra “Guará”, estava tentando resolver seu problema imediato em relação à sua necessidade de identificar seu ônibus, portanto exercitando uma prática de letramento. Porém, o nível de letramento dessa senhora pode ser considerado insuficiente para dar conta de situações elementares de leitura no cotidiano. Pode-se entender o fato de ela não ter pedido ajuda às pessoas para identificar seu ônibus à vergonha e ao constrangimento que sente por não saber ler. É comum esse comportamento por parte das pessoas que não dominam os conhecimentos dos códigos linguísticos escritos. Quase sempre trazem para si a culpa por não saberem ler, culpa essa que lhes é historicamente imputada ao longo da formação histórica do Brasil.
De acordo com Fernandes-Sousa (2006) o ato institucional de 1834 incumbiu ao governo imperial a educação das elites, e aos estados a responsabilidade pela escolarização básica do povo. Como os estados dispunham de recursos escassos, não conseguiam atender a toda a demanda, por isso pouco de fez em relação à educação tanto de adultos quanto de crianças. Nesse período foram organizadas as primeiras classes de alfabetização noturnas para adultos. Os professores utilizavam como processo de alfabetização a silabação-soletracão das famílias silábicas. O livro-texto era a “Carta de ABC”. O ensino era centrado na memorização de letras, sílabas e palavras sem nenhuma vinculação com o contexto social dos alfabetizandos. Na matemática, o ensino consistia em decorar a tabuada. Quando o alfabetizando não conseguia aprender, essa responsabilidade recaía sobre ele, que era visto como alguém que não tinha habilidade para as letras.
Episódio 2
O segundo episódio é sobre uma jovem mãe, que já estava iniciando faculdade.
Seu filhinho, com poucas semanas de vida, apresentou sintomas de infecção intestinal: fezes constantes e aquosas. Ela procurou o médico que prescreveu um antibiótico, escrevendo na receita: “Dar IV gotas de 8 em 8 horas.”. A jovem mãe comprou o remédio e deu as gotinhas ao filho, no horário certo, com uma colherinha de água. Logo após a primeira dose, o bebê ficou prostrado e a mãe correu ao consultório. O médico examinou o bebê e lhe perguntou:
_ Mãe, você deu as gotinhas que eu mandei?
_ Dei sim, doutor, dei as seis gotinhas, mas aí que ele ficou assim, caidinho.
_ Mas, Mãe, não eram seis gotinhas, eram só quatro.
A jovem olhou na receita e leu: “Dar IV gotas de 8 em 8 horas”e começou a chorar.
(Episódio relatado por Stella Maris Bortoni)
Felizmente o incidente não teve uma consequência trágica; o bebê aos poucos voltou a apresentar sinais de vitalidade. Não se pode dizer que a jovem era analfabeta funcional, mas se pode constatar a distância entre os códigos de letramento empregados pelos médicos e a capacidade leitora dos pacientes, mesmo os mais escolarizados.
Episódio 3
O terceiro episódio é sobre um cartaz anexado à parede junto ao caixa de uma loja em Teresina:
“Confirme o troco, antes de sair da loja”.
(Episódio relatado por Stella Maris Bortoni)
O texto é de fácil compreensão para um leitor com nível médio de letramento. Mas para indivíduos com competência leitora reduzida pode ser fonte de problemas. Examinemos duas possibilidades: a do freguês da loja que não sabe sequer decodificar o que está escrito; e a do freguês que lê o que está explícito no texto, mas não atinge o infratexto, o que está implícito e tem de ser inferido: “A loja não se responsabiliza por erros no troco se a reclamação for feita depois que o comprador sair da loja, retornando em seguida”. A capacidade de fazer essa inferência é própria do alfabetismo funcional. A limitação na leitura, no segundo caso, tem implicações no direito do indivíduo como consumidor e como cidadão.
Episódio 4