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Como cada um de nós sabe muito bem, sobretudo graças aos avanços da análise do discurso, todo uso da língua implica inevitavelmente relações de sentido e relações de poder. Nessas relações de poder, a língua é freqüentemente utilizada na prática da discriminação, da exclusão social. O preconceito lingüístico vivo e atuante é uma realidade inegável na cultura brasileira.
Talvez possamos atribuir parte do preconceito lingüístico (que existe em todas as culturas ocidentais) ao vigor de uma concepção tradicional de língua, baseada na crença (de inspiração platônica) na existência de uma língua “essencial”, que vive num mundo apenas inteligível, imaterial, fora do alcance dos nossos sentidos. Que concepção tradicional é essa?
Antes de tudo, é uma concepção que trabalha com abstrações. É muito comum falarmos sobre “a língua”, como se ela fosse um sujeito animado, uma entidade viva. Assim, essa “língua” é pensada como se não estivesse neste mundo, como se fosse um objeto místico a ser buscado sem jamais poder ser alcançado. “A língua” é tratada como se existisse numa outra dimensão, supranatural, à maneira das Formas da filosofia platônica, que só podem ser captadas pelo intelecto e não pelos sentidos.
Ora, “a língua” como uma “essência” não existe: o que existe são seres humanos que falam línguas. A língua não é uma abstração: muito pelo contrário, ela é tão concreta quanto os mesmos seres humanos de carne e osso que se servem dela e dos quais ela é parte integrante. Se tivermos isso sempre em mente, poderemos deslocar nossas reflexões de um plano abstrato — “a língua” — para um plano concreto — os falantes da língua.
No caso específico da língua, esse ideal abstrato é sempre situado num passado remoto e nebuloso, enquanto a situação contemporânea de suposta “decadência” é sempre analisada com pessimismo: “Nunca se falou e escreveu tão mal a língua de Ruy Barbosa”, afirmou, por exemplo, em artigo da Folha de S. Paulo de 1511998 o então presidente da Academia Brasileira de Letras, Arnaldo Niskier, o mesmo que no jornal O Dia (2221999) declarou: “A língua portuguesa propriamente dita é muito difícil”, declaração em que a língua é nitidamente assimilada a uma essência ou Forma ideal (“propriamente dita”) praticamente inalcançável (“muito difícil”).
Uma das conseqüências mais evidentes dessa visão essencialista da língua foi o surgimento, há mais de dois mil anos, da doutrina tradicional do erro, tão arraigada em nossa cultura. Evidentemente, não se trata propriamente de uma “língua”, mas, como já disse, de uma idealização nebulosa de correção lingüística, à qual se dá geralmente o problemático nome de “norma culta” — que eu prefiro chamar de “norma cultuada” e que o prof. Ataliba de Castilho costuma designar de “norma oculta”. Essa “norma culta” acaba sendo identificada, no senso comum e na prática pedagógica tradicional, com a própria noção de “língua portuguesa” ou de “português”, numa equivocada sinonímia de graves conseqüências para o indivíduo e para a sociedade: o uso que não está consagrado nessa “norma culta” (o uso que não está abonado nas gramáticas normativas e nos dicionários) simplesmente “não existe” ou “não é português”. Esse modo de conceber os fatos de linguagem condena ao submundo do não-ser determinadas manifestações lingüísticas não-normatizadas, rotuladas automaticamente de “erro” — e, junto com as formas lingüísticas estigmatizadas, condena-se ao silêncio e à quase-inexistência as pessoas que se servem delas.
Ora, já está mais do que comprovado que, do ponto de vista exclusivamente científico, não existe erro em língua, o que existe é variação e mudança, e a variação e a mudança não são “acidentes de percurso”: muito pelo contrário, elas são constitutivas da natureza mesma de todas as línguas humanas vivas. Além disso, as línguas não variammudam nem para “melhor” nem para “pior”, elas não “progridem” nem se “deterioram”: elas simplesmente (e até obviamente, eu diria) variam e mudam... O português brasileiro, por exemplo, não vai nem bem nem mal, ele simplesmente vai, isto é, segue seu impulso natural na direção da variação e da mudança (que, insisto, são simplesmente variação e mudança e nada têm a ver com “progresso” ou “decadência”).
Desse modo, tudo aquilo que é classificado tradicionalmente de “erro” tem uma explicação científica perfeitamente demonstrável. A noção de erro em língua é inaceitável dentro de uma abordagem científica dos fenômenos da linguagem. Afinal, nenhuma ciência pode considerar a existência de erros em seu objeto de estudo (os erros, falhas e equívocos podem ocorrer nas metodologias de pesquisa, nos procedimentos de análise, na elaboração de construtos teóricos, nos preconceitos de diversa natureza ideológica que o cientista pode assumir consciente ou inconscientemente, mas não no objeto em si). É impossível imaginar um zoólogo, por exemplo, observando dois espécimes de aves de uma mesma família para concluir que um deles está “errado” por apresentar algum tipo de diferença em relação aos outros indivíduos da família. Em vez disso, ele vai considerar as diferenças como objetos que merecem análise e que suscitam hipóteses e teorizações para explicá-los.
No entanto, mesmo que tenhamos tudo isso muito claro em nossas mentes, é preciso sempre lembrar que, do ponto de vista sociocultural, o “erro” existe e sua maior ou menor “gravidade” depende precisamente da distribuição dos falantes dentro da pirâmide das classes sociais, que é também uma pirâmide de variedades lingüísticas. Quanto mais baixo estiver um falante na escala social, maior número de “erros” as camadas mais elevadas atribuirão à sua variedade lingüística (e a diversas outras características sociais dele). O “erro” lingüístico, do ponto de vista sociológico e antropológico, se baseia, portanto, numa avaliação negativa que nada tem de lingüística: é uma avaliação estritamente baseada no valor social atribuído ao falante, no seu poder aquisitivo, no seu grau de escolarização, na sua renda mensal, na sua origem geográfica, nos postos de comando que lhe são permitidos ou proibidos, na cor de sua pele, no seu sexo e outros critérios e preconceitos estritamente socioeconômicos e culturais. Por isso é que, muitas vezes, um mesmo suposto erro é considerado como uma “licença poética” quando surge num texto assinado por um autor de renome ou na fala de um membro das classes privilegiadas, e como um “vício de linguagem” ou um “atentado contra a língua” quando se materializa na fala ou na escrita de uma pessoa estigmatizada socialmente.
Do ponto de vista estritamente lingüístico, não existe diferença funcional (nem, muito menos, erro) entre dizer os menino tudo veio e os meninos todos vieram, mas do ponto de vista social a regra gramatical <eliminar plurais redundantes> é avaliada negativamente e rotulada de “erro”, rótulo que, automaticamente, é aplicado a todas as demais características físicas e psicológicas bem como a todos os outros comportamentos sociais do falante que se serve dela. De fato, o suposto erro lingüístico parece desencadear uma série de avaliações negativas lançadas sobre o indivíduo, numa cadeia de causas e conseqüências que, por ser meramente ideológica é, necessariamente, falsa: alguém fala errado porque pensa errado, porque age errado, porque é errado... O outro lado da mesma moeda ideológica é fácil de imaginar: quem fala certo, pensa certo, age certo, é certo... Esse preconceito social é milenar e já existia, por exemplo, na sociedade romana antiga, onde se falava do consensus bonorum identificado com o consensus eruditorum: as pessoas cultas, educadas e polidas tinham de ser, por conseqüência natural, pessoas boas, honestas, idôneas... Não é de espantar que no senso comum das classes favorecidas exista o preconceito muito arraigado de que todos os pobres são propensos ao vício, à desonestidade, à preguiça, à corrupção moral e à violência..., além, é claro, de falarem tudo errado.
Têm havido, me parece, muitos equívocos no tratamento da questão do “erro” gramatical. Poderíamos classificar esses equívocos em dois grandes grupos. No primeiro grupo estão as atitudes daquelas pessoas que, fascinadas pelos avanços da pesquisa científica, se limitam a considerar os “erros” exclusivamente do ponto de vista lingüístico e negam totalmente sua existência, uma vez que todos os fenômenos divergentes da norma-padrão codificada podem e devem ser explicados à luz de teorias lingüísticas consistentes. No segundo grupo estão as atitudes daquelas pessoas que só consideram o ponto de vista sociocultural e se deixam comover por uma boa intenção baseada na ilusão de que o domínio da tal “norma culta” permite “ascensão social”: assim, elas têm consciência de que o não-respeito às formas gramaticais normatizadas pode ser prejudicial ao futuro do indivíduo que as desobedece e acreditam que é preciso substituir essas formas não-normatizadas pelas formas canônicas, que gozam de prestígio na sociedade.
Acredito que, sobretudo no que diz respeito ao ensino de língua na escola, nós não podemos perder de vista a “dupla personalidade” daquilo que tradicionalmente se chama de “erro”. O erro é uma moeda, e como toda moeda, ele tem duas faces: uma face lingüística e uma face sociocultural. Como já disse e insisto em repetir, do ponto de vista estritamente lingüístico não existe erro na língua, uma vez que é possível explicar cientificamente toda e qualquer construção lingüística divergente daquela que a norma-padrão tradicional cobra do falante. Mas, do ponto de vista sociocultural, o erro existe, sim, e não podemos fingir que não sabemos do peso que ele tem na vida diária dos falantes. É na face sociocultural dessa moeda que está impresso o valor que se atribui ao suposto “erro”. É esse valor que vai entrar em jogo naquilo que Pierre Bourdieu chama de “a economia das trocas lingüísticas”. Quanto vale a língua que eu uso nesse mercado?
Voltando a falar da escola, uma das tarefas de um ensino de língua mais esclarecido seria, então, discutir os valores sociais atribuídos a cada variante lingüística, enfatizando a carga de discriminação que pesa sobre determinados usos da língua, de modo a conscientizar o aluno de que sua produção lingüística, oral ou escrita, estará sempre sujeita a uma avaliação social, positiva ou negativa. É mais do que justo cobrar do professor que ele explique, com base em teorias lingüísticas consistentes, a origem e o funcionamento das formas lingüísticas consideradas não-padrão, que mostre as regras gramaticais que governam cada uma delas. Isso deixará claro que as opções alternativas à regra-padrão tradicional não são caóticas nem confusas nem incoerentes: muito pelo contrário, obedecem regras tão lógicas e consistentes quanto as que governam a opção-padrão e por isso podem ser explicadas cientificamente. A consciência gera responsabilidade. E é ao usuário da língua, ao falanteescrevente bom conhecedor das opções oferecidas pelo idioma, que caberá fazer a escolha dele, eleger as opções dele, mesmo que elas sejam menos aceitáveis por parte de membros de outras camadas sociais diferentes da dele. O que não podemos é negar a ele o conhecimento de todas as opções possíveis. Também não podemos forçar o indivíduo a querer usar as regras padronizadas simplesmente porque nós acreditamos que assim ele se enquadrará melhor na sociedade. E se ele não quiser se enquadrar? E se ele considerar que esta sociedade injusta, excludente e discriminadora não merece o esforço do enquadramento? E se ele quiser, justamente, mostrar a sua diferença, marcar seu distanciamento em relação ao que os grupos dominantes da sociedade consideram o “melhor” ou o “mais aceitável”? E se fizer questão de mostrar que não pertence ao grupo dos “barões doutos”? E se quiser usar a língua como instrumento de crítica e contestação do modelo social vigente? Temos o direito de fazer escolhas no lugar de outras pessoas? É claro que não. Por outro lado, como educadores, temos o dever de expor serenamente os riscos, as vantagens e as desvantagens inerentes ao uso da regra gramatical X ou Y.
Marta Scherre é uma pesquisadora consciente dessa dupla face da velha noção de “erro”. Em seu artigo “A norma do imperativo e o imperativo da norma” (incluído no livro Lingüística da norma, que organizei em 2002) ela enfatiza que
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