A amiga se despediu com dois beijinhos rápidos.  Beatriz teve vontade de  convidá-la a ficar mais tempo. Queria falar de uma lembrança  que a estava afligindo. Mas hesitou. E se a amiga  a interpretasse mal ? Ela parecia bastante conservadora em suas opiniões, fiel a suas raízes familiares e religiosas. E o assunto era mesmo difícil. Beatriz voltou os olhos para o lead  da matéria na revista feminina que tinha nas mãos:  “STF vai discutir a descriminalização do aborto” e mergulhou novamente nos pensamentos interrompidos com a chegada da amiga.

“Será que eu tomei a decisão correta naquele momento? Mas eu não tinha outra opção.”

Haviam passado alguns anos, mas suas recordações  eram claras. Tinha então trinta e oito anos, um casamento  que já perdera o frescor inicial e... um caso amoroso com o colega de trabalho, José Henrique,  que agora já nem morava mais na cidade. Tinha emigrado para os Estados Unidos. No Natal e na Páscoa lhe enviava e-mails e fotos dos filhos pequenos.   O incidente  _ era assim que se referia mentalmente ao episódio _  volta e meia emergia das sombras  onde ela recalcava pensamentos  indesejados, lembranças inoportunas.

   Quando se surpreendeu grávida, tinha ficado muito assustada .  Não comentou nada com o marido. Temia a reação dele. Mas tão logo teve a chance de encontrar o amante no trabalho  lhe falou de sua preocupação.  Ele foi incisivo.

_ Mas você não me garantiu que estava se protegendo? Que estava tomando anticoncepcional ?

_ Eu fiquei duas semanas sem a pílula, porque tive muitas dores nas pernas.

Ele arqueou a sobrancelha e falou em tom de censura:

_ Como você pôde  fazer isso? Eu confiei em você! O filho é meu ?

_ Não sei, pode ser seu, mas pode também ser do meu marido.

_ Mas você não disse que ele já nem procura você mais ?

_ É raro mesmo que ele se interesse por mim, mas um casal dormindo na mesma cama, pode acontecer de repente. Um toque, uma palavra, alguma coisa que desperte a libido. Mas não se preocupe. Eu vou resolver isso.

E resolveu mesmo. Chegando em casa ligou para uma parente  que já lhe havia falado de uma clínica clandestina muito confiável .No dia seguinte Beatriz estava lá. O procedimento cirúrgico custava caro, mas ela nem hesitou. Em menos de duas horas foi atendida, pegou a receita do antibiótico e voltou pra casa,  de alma nova, deixando para trás a aflição que a estava mortificando.

“Nunca hei de saber quem era o pai de meu filho”,  pensou.   O médico da clínica lhe recomendou repouso. Ela se deitou, mas não sem antes tranquilizar o amante.

_ Pode ficar sossegado, está tudo resolvido.

Quando  se encontraram no trabalho não falaram mais no assunto. Ela preferiu não dividir com ele nenhuma outra informação.

_ Você está bem? Ele perguntou.

_ Está tudo bem.

Dias depois ele fez uma viagem e lhe trouxe de presente um pequeno frasco de perfume.

Durante duas semanas Beatriz manteve um resguardo. Depois a vida retornou à rotina.

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