09112009

Entre a liberdade e a acomodação, caiu o Muro

Há alguns anos, depois da queda do Muro de Berlim, o governo alemão me convidou para uma viagem de estudos ao país. Escolhi como tema o Estado de Bem-Estar Social, que, visto de longe, já me parecia o menos imperfeito dos modelos que o ser humano construiu ao longo dos séculos. Visto de perto, continuou parecendo. Refiro-me não apenas à Alemanha mas aos países europeus, em especial os do Norte.

Aliás, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve pensar a mesma coisa. Acompanhei-o uma vez, em 1994, em uma visita justamente à Alemanha. Quando entrávamos no pátio do SPD (o Partido Social-Democrata), em Bonn, ainda a capital, Lula comentou distraidamente: Se a gente tivesse alguma coisa parecida com o que tem a Dinamarca, estaria de bom tamanho.

Detalhe importante: naquela época, Lula era ainda tido como um feroz esquerdista, um anti-capitalista.

Mas voltemos ao trilho principal. Uma das entrevistas programadas pelo governo foi com um pequeno empresário da antiga Alemanha Oriental, que tinha uma história interessante a contar.

Ele havia sido, no comunismo, uma espécie de mestre de obras da pequena cidade em que vivia, responsável por todo tipo de consertos. Claro que como empregado do onipresente Estado.

Para aumentar o salário, ele usava o material do onipresente Estado para bicos particulares, sempre na sua especialidade.

Caiu o Muro, morreu o comunismo e ele usou a expertise adquirida e a freguesia para montar sua firma de construção civil que já dava emprego a uma dúzia ou mais de pessoas quando me levaram a visitá-lo. Contei essa história na Folha, à época, mas não consegui recuperar o texto no arquivo eletrônico.

Fico devendo, pois, o nome do cidadão, a cidade e o número de empregados. Perdão.

Era claramente a última pessoa de quem se poderia esperar alguma condescendência com o antigo regime.

Possuidor do famoso espírito animal que caracteriza o empresariado capitalista, era obrigado a burlar as regras do jogo para exercitá-lo. Liberado das amarras do comunismo, prosperara nadando na sua praia e sem infringir a lei.

Mas ele tinha suficiente senso crítico para reconhecer, primeiro, todas as vantagens do novo regime, e, segundo, o que considerava a única do antigo: cuidar das pessoas do berço ao túmulo, expressão que usou e nunca esqueci.

Conto essa história, da vida real de uma pessoa comum, para chegar ao ponto: o que derrubou o Muro e sepultou o comunismo não foi a necessidade de bens materiais, mas o desejo de liberdade.

Não que os alemães do Leste, os ossies como são chamados ainda hoje, vivessem na abundância. Ao contrário, faltavam até bananas, que não chega a ser artigo de luxo. Mais: podiam perfeitamente comparar a vida de um lado e do outro do Muro, porque viam, ainda que ilegalmente, o Die Tagesschau, o Jornal Nacional da televisão ocidental, um ritual noturno muito cultivado, hoje como ontem.

Recebiam, também clandestinamente, o catálogo Otto, que mostrava todos os produtos disponíveis em uma economia de mercado que funcione - e a da Alemanha Ocidental funcionava, e como.

OK, era um apelo forte. Mas as necessidades básicas, inclusive de alimentação, saúde e educação, estavam atendidas.

O que mais faltava era justamente a liberdade para falar, pensar, ler, escrever, viajar - e até comprar as coisas que o Otto mostrava (hoje, a internet mostra muito mais). Ou a liberdade de empreender, livre do onipresente Estado.

O que é notável na queda do Muro é que não houve uma liderança, um partido, um movimento responsável pelas ações que levaram primeiro à sua abertura e depois à queda. Foi o tal de povo mesmo que meteu literalmente o pé nele e o derrubou.

Final feliz, então? Quase. Recente pesquisa do Pew Research Center dos Estados Unidos, nos antigos países comunistas, mostra que é entre os alemães do leste que se encontra a maior porcentagem de apoio tanto à democracia como ao capitalismo (85% e 82% respectivamente). Para comparação: na Hungria, que se rebelou contra o comunismo em 1956 (33 anos antes dos alemães orientais, portanto), o apoio é de 56% à democracia e apenas 46% ao capitalismo.

Assim mesmo, a Deutsche Welle relata que, de um lado e do outro do antigo Muro, há resmungos. Diz a reportagem da emissora que tanto na Alemanha Ocidental como na Oriental, todo mundo agora parece concordar em uma coisa ao menos: tudo costumava ser muito melhor.

A vida é assim, a história nunca termina ao contrário do que muita gente chegou a crer quando o Muro caiu.


Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às quintas e domingos na página 2 da Folha e, aos sábados, no caderno Mundo. É autor, entre outras obras, de Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e O Que é Jornalismo.

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Nasci no remoto ano de 1945, em São Lourenço, encantadora estação de águas no sul de Minas, aonde Manuel Bandeira e outros doentes iam veranear em busca dos bons ares e águas minerais, que lhes pudessem restituir a saúde.

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